Review – Serial Experiments Lain (Anime) [Corrente de Reviews 2016]

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Serial Experiments Lain

Desde já, quero deixar avisado que este artigo será um pouco diferente da maioria daqueles publicados aqui, e isso por uma série de motivos. A começar pelo fato dele ser a primeira participação do blog na Corrente de Reviews, projeto anual do blog Anikenkai. Para mais informações sobre o que é a corrente em si, bem como para ver as demais resenhas dos demais blogs que participam da brincadeira, clique neste link aqui. Já para saber quem continuará a corrente, desça até o último parágrafo deste texto para ver quem é o próximo.

A Corrente teve início na última quarta-feira (12/10), com o pessoal do Otaku Pós-Moderno, que a abriram com uma review de Hibike! Euphonium, aclamado anime de 2015 do estúdio Kyoto Animation. E foi nesse texto que eles me indicaram para falar de um dos poucos animes que conquistaram fama mundial como uma espécie de “clássico cult” da animação japonesa: Serial Experiments Lain, produção original de 1998 do estúdio Triangle Staff, com direção de Ryutaro Nakamura, roteiro de Chiaki Konaka, produção de Yasuyuki Ueda, e design de personagem de Yoshitoshi Abe.

Na obra, a história começa com Iwakura Lain, uma garota aparentemente normal, ainda que introvertida e desinteressada em tecnologia, que ouve suas colegas de classe falarem do suicídio de uma garota da mesma escola, bem como de um misterioso e-mail, supostamente enviado por essa menina, que diversas crianças daquela escola teriam recebido. Curiosa, ao chegar em casa Lain liga ao seu Navi (basicamente, um computador) e vê que ela também recebeu esse e-mail. E nele, Chisa, a menina que se matou, diz que apenas abandonou seu corpo físico, tendo então ido para algum lugar onde ela encontrou com Deus.

O que se segue a partir daqui é uma série de eventos estranhos que não apenas farão Lain questionar quem ela realmente é, como também tornam cada vez mais difícil de dizer o que é real e o que não é, conforme a barreira que separa a Wired (basicamente, a internet) do mundo real vai se desfazendo. E isso é tudo o que eu posso explicar sem dar spoilers, então siga com o texto por sua conta e risco [rs].

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Iwakura Lain, protagonista da história.

Agora, vou ser bastante direto logo de início: eu não gostei do anime. Sob circunstâncias normais eu provavelmente jamais faria uma review de Serial Experiments Lain, justamente porque não me agrada a ideia de fazer um texto apenas para falar mal de uma obra, o que já é ainda outro motivo pelo qual este artigo foge um pouco ao padrão do blog. Claro, eu ainda fiz o meu melhor para escrever uma review “calma e equilibrada”, para usar das palavras do pessoal do Otaku Pós-Moderno [rsrs], mas esse artigo ainda será, essencialmente, uma longa explicação de porque o anime não me agradou.

Não que o anime seja horrível, ou qualquer coisa do tipo. Mas ele simplesmente não é para mim. Embora eu precise apontar: após ler diversas resenhas e análises da obra, eu posso ver que os motivos pelos quais as pessoas amam ou odeiam esse anime são essencialmente os mesmos. Em outras palavras, o que uns veem como problemas que atrapalham no aproveitamento do anime, outros veem como exatamente aquilo que torna essa obra algo tão interessante. Então não é como se eu absolutamente não conseguisse entender porque o anime ganhou a fama que ganhou. Mas é um caso de “ame ou odeie”, ao menos na primeira vez que você o assistir.

Como comentário final antes de iniciar a review propriamente dita, eu quero apontar que eu não irei me preocupar, aqui, de explicar em detalhes a história do anime, basicamente porque demandaria muito tempo. Mas como eu sei que mesmo aqueles que terminaram ao anime possivelmente estarão incrivelmente perdidos com relação à maior parte da história (como eu estava antes de pesquisar a respeito da obra), eu preparei uma nem-tão-rápida cronologia dos eventos da série, que deve ao menos ajudar àqueles que ainda tem dúvidas quanto à trama em si. Para ver a cronologia, clique aqui. E com isso, vamos à review.

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Serial Experiments Lain é o típico anime “ame ou odeie”.

Agora, assistindo Serial Experiments Lain, eu diria que o anime pode ser divido em duas “partes” mais ou menos bem definidas, e isso por conta de uma drástica mudança de “tom” no meio da série. Do episódio 1 ao 5, o foco maior do anime está na construção de seu mundo, e é aqui que tomamos conhecimento dos personagens centrais da obra (Lain e sua família, Alice e as demais amigas de Lain na escola, Chisa, os chamados “Homens de Preto”, et.), bem como recebemos algumas pequenas informações que serão relevantes no futuro (a existência de um “Deus” na wired, dos Knights, a – por agora – possível existência de múltiplas “Lains”, etc.).

Ao passarmos para o episódio 6, porém, o anime começa a se dirigir ao seu final. Personagens importantes ainda são introduzidos aqui e ali, mas num geral a partir desse ponto a obra passa a se focar muito mais na sua história. E é a partir deste ponto que começam a surgir respostas para perguntas deixadas em aberto até aquele momento. Isso dito, eu vou me concentrar na história mais adiante neste texto, e por agora eu quero falar especificamente sobre esse começo.

Agora, em termos de obras que merecem o adjetivo de “mindfuck“, Serial Experiments Lain é um caso relativamente único. Diversos animes antes e depois chegaram a testar os limites do que é possível passar em uma mídia visual, e do quanto você pode deixar em aberto para a interpretação do expectador. Animes como Shoujo Kakumei UtenaNeon Genesis Evangelion e, bem posteriormente, Mawaru Penguindrum [review] são um bom exemplo do que quero dizer. Mas o que diferencia Serial Experiments Lain desses animes é que enquanto aqueles começam relativamente “normais” em termos de estrutura narrativa, e apenas mais para o final é que começam a trazer fortes experimentações, aqui o anime faz o caminho inverso, já começando altamente – para me aproveitar do título do episódio 1 – “estranho”.

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Difícil pensar em um título mais apropriado para o primeiro episódio.

Estranheza essa, aliás, que fica evidente bem cedo. Por exemplo, temos as sombras do anime, todas elas com manchas vermelhas ou azuis. O que já de cara parece fora de lugar, já que o cenário de Lain é, num geral, bem normal. Ainda assim, nenhum personagem estranha ou comenta aquelas sombras, e poderíamos até nos perguntar se os personagens veem as sombras como nós as vemos. E avancemos um pouco mais no episódio, ainda em seus primeiros dez minutos nós temos a icônica cena da fumaça saindo dos dedos da Lain, na escola.

Obviamente, estes elementos não estão ali sem motivo. Em uma entrevista realizada em 5 de agosto de 2000, na convenção Otakon (EUA), Yoshitoshi Abe coloca que as sombras foram uma decisão do diretor, Ryutaro Nakamura, para significar que a Wired está sempre presente, ainda que escondida da vista (por isso, nas sombras). Já sobre a fumaça saindo dos dedos da Lain, na mesma convenção Yasuyuki Ueda afirma que… Bom, nesse caso é mais fácil eu só dar a citação mesmo:

Se você quer saber sobre o significado, para ela a fumaça saindo é uma realidade para ela, mas para todos ao seu redor, eles não podem ver, não é parte da realidade deles. Então nesse sentido, todo mundo tem a sua própria realidade que outras pessoas não podem ver, então é meio que uma brincadeira entre realidades para cada indivíduo. [1]

O episódio 2 segue na linha do 1 em termos de momentos altamente esquisitos, e logo no começo temos a cena de “fantasmas” saindo das paredes conforme a Lain caminha pelos corredores da escola. Ponto é: o começo de Serial Experiments Lain traz uma série de eventos incrivelmente confusos, e não toma qualquer iniciativa em explicar estes eventos.

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As definições de “o que diabos eu estou assistindo?!” foram atualizadas.

Tudo isso culminando, claro, no episódio 5, aquele dedicado à irmã da Lain, Mika. Eu honestamente fico em dúvida de qual o episódio mais “what the f*ck i just saw?!” do anime, se o 1 ou 5. E, para ser bem sincero, eu não tenho nem a mais vaga noção de para que exatamente esse episódio serviu.

Caso você esteja curioso, o que de fato aconteceu aqui, conforme Yasuyuki Ueda comenta na já mencionada entrevista na Otakon 2000, é que a Mika ficou “presa” entre a wired e o mundo real, com o seu corpo sendo reduzido ao estado de um fantoche. Aparentemente, isso foi obra dos Knights, dado uma cena na qual Mika colapsa no meio da rua com uma sombra projetando o símbolo dos Knights abaixo dela. Mas para que isso serviu é difícil de dizer. Algum tempo depois, no episódio 7, nós temos uma cena da Mika observando a Lain, o que pode indicar que os Kinghts apenas queriam alguém para observar a protagonista. Mas tirando isso, ter a Mika nesse estado foi talvez um dos elementos mais inúteis em todo o roteiro de Lain.

O que me traz ao meu primeiro grande problema com o anime. Vejam, Chiaki Konaka, roteirista do anime, é também um conhecido autor do gênero de horror no Japão. Inclusive, ele chegou a escrever algumas obras Lovecraftianas, e elementos desse tipo de história permeiam boa parte das suas obras. E obviamente Konaka quis fazer de Serial Experiments Lain uma obra de horror.

Agora, tenham em mente que “horror” é bem diferente de “terror”. A ideia do horror não é necessariamente assustar, mas antes causar uma sensação de insegurança, desconforto e ansiedade. Shin Sekai Yori [review], por exemplo, foi uma obra relativamente recente da animação japonesa que foi caracterizada como “horror”, por mais que ela jamais tente assustar ao seu espectador. E todo esse começo de Serial Esperiment Lain busca causar exatamente essas sensações.

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Horror e Terror podem parecer semelhantes, mas possuem diferenças sutis importantes.

Porém, para mim, esse tom simplesmente não funcionou. Ao ponto de que muitas vezes, com toda honestidade, eu me pegava rindo do anime. O que era para soar “estranho” só me parecia bobo. O que era para ser “desconfortável”, me soava apenas forçado. E o que deveria causar tensão apenas me fazia revirar os olhos. No final, boa parte das cenas de “horror” inclusive se provaram completamente filler, sendo sumariamente ignoradas e esquecidas pelo restante do roteiro. Nunca mais os dedos da Lain soltam fumaça. Nunca mais é referenciada a cena – completamente fora de qualquer cronologia, vale dizer – na qual Lain vê uma garota ser atropelada por um trem. E as imagens fantasmagóricas do episódio 2 quando muito são vagamente referenciadas no episódio 5, quando vemos que a Mika se tornou uma delas (se aquelas imagens do episódio 2 estão na mesma situação da Mika, porém, fica aberto à interpretação). E nada disso é explicado dentro da história. Então fica a pergunta: se nem o anime parece se importar com essas cenas, por que eu, como espectador, deveria? Ainda mais considerando o quão inconsequentes elas são…

Com isso em mente, para mim esses primeiros cinco episódios foram incrivelmente arrastados, adicionando cenas sem relevância na tentativa de estender o tamanho do episódio. Verdade seja dita, nenhum episódio do anime parece arrastado enquanto você assiste, e com exceção das longas pausas a cada fala dos personagens (uma outra tentativa de criar tensão, mas que rapidamente se revela pelo que realmente é: uma forma de economizar dinheiro em uma série claramente de baixo orçamento) o anime como um todo tem uma fluidez bastante agradável. Mas pensando em retrospecto, não fosse por essas tentativas exageradas de criar “clima” os primeiros 5 episódios facilmente poderiam ser resumidos em 3 ou 4.

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Como construção do que vem pela frente, os primeiros 5 episódios fazem um péssimo trabalho. E conforme entramos no sexto, isso fica bastante evidente.

E então nós chegamos no episódio 6, e é aqui que a história de Serial Experiments Lain de fato começa. E aqui nós temos um problema. Pelos últimos 5 episódios o anime fez muito pouco em termos de construir uma trama de fato, se focando mais na construção de uma atmosfera com apenas alguns indícios de que talvez houvesse algo maior acontecendo. Agora, porém, a história segue numa velocidade como que tentando compensar a falta de construção dos episódios anteriores. E daqui até o episódio 9 o espectador é introduzido a uma série de colocações que deveriam soar como revelações importantes, mas que no final das contas parecem tiradas do mais absoluto nada.

Em um artigo anterior, “Sobre histórias sem rumo (ou, a importância da previsibilidade)“, eu já havia argumento a importância de uma obra deixar mais ou menos claro o que o espectador pode encontrar no episódio seguinte. Serial Experiments Lain não faz isso. Alguns verão nesse formato algo inovador e diferente, mesmo surpreendente. Mas para mim a falta de uma devida construção prévia em muito minou qualquer impacto das revelações que vemos a partir do sexto episódio. Até então eu se quer sabia que “energia psi” era algo possível nesse mundo, e agora preciso acreditar que ela foi largamente estudada, causou um enorme acidente matando sabe-se lá quantas crianças, e foi aproveitada pelos knights para fazer isso aqui?! É extremamente aleatório, soando puramente forçado e um mal planejamento da parte do roteirista.

E o mesmo pode ser dito de grande parte do roteiro do anime deste ponto em diante. Ao ponto de que inconsistências e mesmo furos no roteiro vão ficando cada vez mais evidentes conforme a série progride.

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Do episódio 6 em diante, o anime te joga uma bullshit atrás da outra e espera que você encare como alguma grande revelação.

Por exemplo, no episódio 8 nós descobrimos a existência de uma terceira Lain, que habita apenas a Wired e tem uma personalidade muito mais caótica e destrutiva, com o seu feito mais notável sendo espalhar a informação de que a Alice, amiga da Lain, possuía fantasias sexuais com seu professor. Onde estava essa Lain até então? Bom, o anime pede que você acredite que ela “sempre” esteve ali.

Outro exemplo: no episódio 9 descobrimos que a musica que toca na casa noturna “Cyberia” faz com as pessoas de lá de dentro pensem ver a Lain ali. Aparentemente isso é obra dos Knights, mas como praticamente tudo o que eles fazem o motivo disso nunca é dado. Nós temos de acreditar que isso (e ferrar com a mente da Mika, além de fazer uma imagem da Lain aparecer no céu) faz parte do plano maior de quebrar a barreira entre a Wired e o mundo real, mas claramente o roteirista não pensou nisso passo a passo. O resultado é que esses “passos” acabam por soar incrivelmente aleatórios e sem sentido.

Mas a coisa assume um formato de efetivo furo de roteiro no episódio 11, quando Lain vai até a Alice para dizer que ela iria apagar das mentes das pessoas os boatos envolvendo os pensamentos da menina sobre o seu professor. Algo que Lain  havia feito no episódio 8, mesmo episódio em que os boatos surgem.

E claro, temos a “grande” revelação final, no episódio 12, de que o empregador dos “Homens de Preto” na verdade queria unir a Wired ao mundo real. Exatamente o plano de Masami Eiri. O “Deus” adorado pelos Knights, que se esforçavam para levar à cabo os objetivos dele. Knights estes que os “Homens de Preto”, à mando do seu cliente, mataram. E mesmo que fosse para argumentar que o empregador queria o mesmo que o Eiri, mas não queria o Eiri como Deus, vamos lembrar que um dos “Homens de Preto” explicitamente diz à Lain que os dados relativos ao Eiri seriam apagados do Protocolo 7, mas este ainda assim segue aparecendo sem o menor problema pelo restante do anime. As explicações para essa inconsistência seriam basicamente: 1) que o empregador mentiu aos “Homens de Preto” de que Eiri seria apagado; 2) que apagar as informações do Eiri do Protocolo 7 (segundo o próprio, exatamente aquilo que lhe deu vida na Wired) por algum motivo não mata o Eiri; ou 3) que o roteirista basicamente esqueceu que deu aquela linha para um dos “Homens de Preto”. Como podem ver, nenhuma destas explicações é exatamente satisfatória em termos de resolver a inconsistência entre as motivações e as ações dos personagens.

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Surprise, mothafucker

E só a título de informação: o número estimado de neurônios no cérebro humano é de 100 bilhões, então a população mundial, em torno de seus mais de 7 bilhões no tempo que escrevo este artigo, e ainda menos em 1998, ainda está bem longe de atingir o número de neurônios no cérebro humano, ao contrário do que o nono episódio do anime dá a entender (é, eu sei, isso soa como puro nitpiking, e não vou pedir para o leitor se importar com isso como eu me importei. Em todo caso, ao menos agora você sabe o número cientificamente correto. De nada).

Acreditem: eu ainda poderia me estender mais nesse assunto. Fato é que o roteiro de Serial Experiments Lain está apoiado em bases absurdamente frágeis. Inconsistente, incoerente, mal estruturado, mal apresentado, forçado… Se você é do tipo que gosta ou procura por uma boa história, isto é, uma boa trama, este anime se mostra uma enorme decepção.

Embora dizer isso talvez seja um tanto quanto injusto. Afinal, não é difícil argumentar que Serial Experiments Lain não é e nem nunca foi sobre a sua história, mas sim sobre seus temas e ideia, sem contar que são estes temas e ideias justamente aquilo que mais atraem as pessoas. O quanto esse argumento é válido vai depender de cada um, e enquanto eu concordo com a afirmação, pessoalmente eu não penso que isso compensa todos os problemas expostos até aqui. Isso dito, vocês já se perguntaram qual é, exatamente, a mensagem do anime?

Em uma entrevista para a edição de outubro de 1999 (vol. 7, nº9) da revista Animerica, Ueda, Konaka e Nakamura responderam exatamente isso. Ueda afirmou que “não é como se eu quisesse comunicar algo. É um trabalho mais pessoal. Eu quero saber como as pessoas se sentem em relação a ele” [2]. Konaka disse que seu objetivo era a “desconstrução do anime para a TV. Queríamos comunicar os sentimentos humanos” [3]. Já Nakamura disse que queria passar “o espectro multidimensional do ‘eu’ existente – isto é, a relação entre o ‘eu’ e o mundo” [4]. Já quando perguntado, na mesma entrevista, se havia alguma mensagem no anime com relação à tecnologia, Konaka afirmou que não havia nada do tipo ali. Declarações no mínimo curiosas, eu diria.

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Sendo bem sincero, eu acho que os criadores estavam tão confusos com esse anime quanto todo mundo que o assistiu.

Mas com relação aos temas presentes na série, tem um ponto em particular que eu queria comentar, que diz respeito ao caráter supostamente “visionário” do anime.

Por um lado, não é difícil de ver de onde vem isso. Serial Experiments Lain de fato apresenta algumas ideias com relação ao comportamento das pessoas na internet que se mostrariam bastante precisas. Por exemplo, a ideia de uma espécie de “dissociação” entre quem você é no mundo material e quem você é na internet, inclusive com as pessoas assumindo uma postura muito mais agressiva enquanto na rede. E claro, a fala do empregador dos “Homens de Preto”, de que, parafraseando-o, a internet está lotada de anarquistas que só falam bobagens e pessoas que acham que piadas podem ser revolucionárias, soa mais atual hoje do que nunca antes. A meu ver, porém, o anime é muito mais interessante se visto como um produto do final dos anos 1990.

Essa era uma época na qual a importância da internet já era claramente além de qualquer dúvida, e o futuro tecnológico da humanidade se mostrava bastante próximo. Não a toa, em 1995 temos o filme Ghost In The Shell, que lida com temas como a integração homem e máquina, os perigos do hacking em um cenário de tal integração, e a possibilidade de surgimento semi-espontâneo de uma inteligência à partir da rede.

Em 1998 era lançado o mangá Digimon Adventure V-Tamer 01, e em 1999 chegava às televisões a série Digimon Adventure, ambas histórias tratando de personagens que vão para um “mundo digital”. E no cenário mundial, Matrix, que lida justamente com a ideia de uma realidade construída virtualmente, foi lançado em 1999.

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Serial Experiments Lain pode ter seus momentos de “visionário”, mas ainda é claramente um produto de seu tempo.

Já o tema de conectividade em Serial Experiments Lain muito lembra à Neon Genesis Evangelion, com o objetivo final de Masami Eiri, de conectar as pessoas sem o uso de dispositivos como o próximo passo da evolução humana, muito se assemelha ao projeto de Instrumentalidade Humana de Evangelion.

Vale dizer, nada disso denota inspirações ou referências. Com uma diferença de meses entre o final de Serial Experiment Lain e o lançamento do filme Matrix, a ideia de que o segundo se inspirou no primeiro, propagada por muitos, soa como simplesmente implausível. Já com relação às semelhanças entre aquele e Neon Genesis Evangelion, em uma entrevista para a revista francesa Asia Movie Technical  Journal HK, o próprio Chiaki Konaka menciona que ele só conseguiu assistir Evangelion quando este foi re-exibido, não tendo nenhum contato com o anime antes ou durante a produção de Serial Experiment Lain.

Ponto aqui é que esse anime está bastante imerso em um zeitgeits bastante específico. É a época dos computadores pessoais. É a aproximação do Bug do Milênio. No Japão, é o período pós atentado do gás Sarin e do terremoto de Kobe, que parecem ter deixado profundas marcas na forma como relações interpessoais foram vistas e representadas pela ficção posterior (e para quem tiver interesse no tema, já deixo linkado o ótimo artigo do Vinícius, do Finis Geekis, a respeito do atentado com gás). E, na minha opinião, Serial Experiments Lain responde muito mais aos anseios e questionamentos daquela época do que aos de hoje, com sua visão quase mística da internet inclusive estando bastante datada em um mundo que efetivamente se acostumou com o conceito.

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O conectar-se com os outros é um tema importante em Serial Experiments Lain, mas não apenas ali.

Honestamente, me surpreende a fama que o anime ganhou, e eu não digo isso de forma pejorativa. Como seu próprio nome já prenuncia, Serial Experiments Lain foi um experimento, e um que a própria equipe sabia o quão arriscado seria. Seu foco foi muito mais no visual e no atmosférico, com pouco cuidado prestado à história e personagens, que só começam a ganhar alguma definição mais concreta conforme a história se aproxima já de sua metade. Uma obra propositadamente confusa, com uma visão marcada pela época em que foi produzida, é uma surpresa que esse anime ainda seja tão lembrado. Embora não uma surpresa completa, ao menos não depois de eu ter lido e assistido diversas resenhas, análises e reviews do anime.

Pessoalmente falando, eu prefiro que uma história seja o mais clara possível. Isso não significa que ela precisa falar tudo, e existem meios de comunicar sem precisar recorrer a exposições. Kyousou Giga, por exemplo, é um exemplo fenomenal de uma obra que consegue passar muito com seu visual. E mesmo que o autor queira deixar espaço para interpretação, isso ainda pode ser feito de forma a ainda passar as mensagens que deseja, vide o exemplo de Mawaru Penguindrum. Pessoalmente, não acredito no discurso de que “toda interpretação é válida”, e a inexistência de uma resposta clara (ou ao menos inferível) para o máximo possível de elementos da trama é, para mim, tão somente um defeito, não uma virtude. Mas eu sei que nem todos pensam assim.

Para muitos, é o fato de Serial Experiments Lain ser tão aberto a interpretação que o torna uma obra tão interessante. Uma que você pode rever diversas vezes e ainda tirar algo novo de lá. Se esse algo realmente está lá ou não, isso muitos vezes se quer importa: é algo muito mais pessoal, a “minha” interpretação, como alguns colocariam, que reflete a experiência que a pessoa teve com a obra. Por conta disso, é um anime que certamente fica na memória, e acho que é isso que o torna tão conhecido mesmo ainda hoje, bem como é o que permite que as pessoas ignorem ou relevem os diversos defeitos (por vezes inclusive surgindo com explicações elaboradas para como tais defeitos são, na verdade, inteiramente propositais, e trazem em si um significado profundo que apoia as mensagens e ideias do anime).

Para mim, porém, não funcionou. Pessoalmente, eu não usaria a palavra “pretensioso” para descrever ao anime, mas entendo quem ficar com essa impressão. É uma obra que colocou a experimentação à frente até dos mais básicos princípios de narração, e o resultado será genial para uns e irritante para outros.

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E dando continuidade à corrente, o próximo a fazer um artigo será o Kouichi, do Animes Tebane, para quem indiquei aquele que é, pessoalmente, o meu “top 1” em termos de animes: Kino no Tabi. A review dele deve sair na segunda-feira (17/10), e eu espero que ele tenha gostado /o/.

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Notas:

1 – Na tradução original para o inglês, “if you want to know about the meaning, for her the smoke coming out, it’s reality to her, but to everyone else that’s around her, they can’t see it, it’s not part of their reality. so in that respect, everyone has their own reality that another person can’t see, and it’s kind of a playoff between realities for each individual person”.

2 – No original, “It’s not like i wanted to communicate something. It’s more like a private work. I want to know how people feel about this work”.

3 – No original, “deconstruction of TV animation. We wanted to communicate the human feelings”.

4 – No original, “The multidimensional wavelength of the existential self – Meaning the relationship between self and the world”

Imagens (na ordem em que aparecem):

1 – Serial Experiments Lain, episódio 1

2 – Serial Experiments Lain, episódio 1

3 – Serial Experiments Lain, episódio 1

4 – Serial Experiments Lain, episódio 1

5 – Serial Experiments Lain, episódio 2

6 – Serial Experiments Lain, episódio 4

7 – Serial Experiments Lain, episódio 6

8 – Serial Experiments Lain, episódio 6

9 – Serial Experiments Lain, episódio 12

10 – Serial Experiments Lain, episódio 13

11 – Serial Experiments Lain, episódio 6

12 – Serial Experiments Lain, episódio 12

13 – Página da Corrente de Reviews 2016, no blog Anikenkai.

10 comentários sobre “Review – Serial Experiments Lain (Anime) [Corrente de Reviews 2016]

  1. Em primeiro lugar: Parabéns. Lain é uma série complicada e difícil de falar. Seu texto foi bem menos superficial que a maioria e levanta interpretações interessantes. Gostei também que foi bem sincero quanto ao seu desgosto com a série e como isto pode ter influenciado a sua opinião.
    Porem fico um pouco triste que uma série que gosto tanto (e qua qual gosto tanto discutir vários pontos) tenha sido tão desagradável para você. Mas, apesar disto, noto que tratou a série com muito respeito e ainda trouxe temas que ajudam a ver os animes em geral de uma forma menos ingênua. Assim, por fim. temos um ótimo post.

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  2. Ótima review, sem spoilers importantes, acho que até quem não viu e quer ver pode ler isso. Mesmo discordando de alguns pontos no que diz respeitos ao seu gosto e ‘forma de aproveitar’ a obra, ainda achei interessante seu ponto de vista e algumas informações.

    Para mim, todas as coisas mostradas no anime, até as ‘inúteis’ para o enredo do mesmo que foram citadas, serviram para mostrar e reforçar a necessidade que os humanos tem em ficar conectados (seja na internet ou fora dela). Claro, vivemos em sociedades e tudo o mais, somos dependentes de outras pessoas tanto para viver nossas vidas como para fazer as coisas, mas não percebemos claramente isso. Existem também os problemas dessa necessidade, os problemas de interação social ~e sociedade, coisas que são certas e erradas, mas isso tudo é mostrado nas cidades, no meio da tecnologia, o anime não mostra um mínimo de natureza no mundo real, tudo é vazio e conectado, todos estão falando toda hora e jugando os outros (fios e fios sendo mostrados), senti uma grande falta da relação do ser humano com a natureza. as pessoas só estavam “felizes” no meio do que elas mesmo criaram.
    A Lain do mundo físico é solitária, ela tem amigos e família, mas eles não estão lá para ela (tem até plotwist no final sobre isso) mas a Lain da Wired é completamente o oposto, ela pode até ser vazia como a Lain “real”, mas as relações que ela tem na Wired fazem ela ser o que ela é.
    E a mensagem que vi no anime foi essa, a galera da Wired tentando se fundir à realidade do mundo físico, mas na minha concepção isso era uma coisa horrível, por causa dessa ‘necessidade’ de ficar conectado que falei, por causa da dependência da tecnologia e perda total da relação do ser humano com a natureza, eles dizem que é bom viver na wired livre e sem corpo, perto de deus, mas dizem isso porque estavam presos no seu modo de vida, a Wired é mais um paraíso para os mortos ou uma fuga da realidade vazia, onde cada um pode ser o que realmente quer, mas não é um lar para os que estão vivos. Se isso acontecesse, seria só uma vida artificial.. na verdade seria pura Matrix.

    Não sei se ficou claro, mas esse foi meu entendimento central do anime, tem várias outras coisas interessantes de ser interpretar, mas pra mim foi isso que me fez gostar de S.E Lain. Mesmo que os caras nem se quer pensaram em passar alguma coisa, de alguma forma dá pra aproveitar, imaginar e refletir um pouco.

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  3. Boa review. Terminei o animê recentemente, e posso dizer que ele é uma “experiência seca”. Ele trás questionamentos filosóficos como o que são os humanos, o que é existência, o que seria Deus, qual a necessidade do corpo, entre outros pontos. O problema é que faz isso de forma “seca”, por se situar num mundo bagunçado, confuso e como você disse, contraditório. Ao mesmo tempo, não consigo dizer que SEL é ruim. Apenas me parece uma obra feita para um tipo bem específico de público (no qual eu nem você estamos inseridos), embora mesmo assim falhe em alguns aspectos.

    Eu daria um 6 ou 7/10.

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    • Eu vejo o tom seco da obra mais como uma qualidade do que um defeito. Esse jeito de expor as questões, essa quase indiferença em tratar dos próprios temas, lembra-me do motivo do tipo de terror japonês ser tão impactante: é simplesmente frio, irreverente. Portanto, quando Lain usa essa forma “seca” de evocar suas discussões, imagino que entre em algo parecido: simplesmente esses fatos não ligam para nós, também traçando a visão da série sobre a relação Humano X Humano.

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  4. Acabei de assistir ao anime, curti o anime e curti sua resenha, apesar de isso ser meio paradoxal. hahaha

    Acho que a sua experiência ruim pode estar relacionada ao fato de a história não ser sobre a relação homem X tecnologia, mas sim sobre a relação homem X homem. Não é sobre como nos portamos na Internet (ainda que realmente o tema de pessoas que pagam de revoltadinhos na internet seja beeem atual), na real não podemos nem dizer se a Wired é realmente uma referência à internet. É sobre como nos vemos, como nos conectamos com os outros, como dependemos de uma força superior (é exatamente o que o Eiri diz, que ele só existe porque alguém adora a ele. Que seria o mesmo que Deus, o conceito de Deus que temos).
    E sim, tem um monte de coisas soltas que se propõem a não ser explicadas, o que eu achei muito bom porque creio que o anime seja aberto a interpretações completamente pessoais. Por exemplo, no episódio que fala sobre rumores, quando a Lain espalha boatos sobre a Arisu, eu achei sensacional a cena dela em um nada com várias bocas falando várias coisas. É uma representação quase que teatral, é uma licença poética. Eu vi muita licença poética na história, nas sombras meio bizarras, nas crianças adorarem à imagem dela antes dos adultos, nos fantasmas na parede da escola. Mas é aquilo, a história é tão aberta, que a interpretação é muito pessoa.

    Acho que a linha entre amar ou odiar a história está justamente no que você espera da história.

    PS. Eu também acho que ‘pai’ dela era o verdadeiro Deus da Wired.

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  5. Nunca vi uma review tão boa assim de nada. Você, apesar de deixar claro sua opinião negativa, tem argumentos muito bons e demonstra uma excelente compreensão da história (eu não vi o anime). Caí aqui procurando reviews para saber se valia à pena ver esse anime e agora quero saber mais sobre este blog e seus outros textos!

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  6. “E, na minha opinião, Serial Experiments Lain responde muito mais aos anseios e questionamentos daquela época do que aos de hoje, com sua visão quase mística da internet inclusive estando bastante datada em um mundo que efetivamente se acostumou com o conceito.”

    Mds me identifiquei com essa parte, eu achava mt irritante essa parte deles falando da net como se fosse algo mistico, magico ou omg deus te mandou um email, mas acho q estou sendo dura pq é um anime dos anos 90, mas acredito q tenha obras melhores q abordem temas de existencialismo humano, internet e bla bla bla

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