O quanto uma história precisa explicar?

Eu costumo dizer que nenhum obra é perfeita, sendo portanto o seu dever esconder a sua imperfeição. Se eu consigo terminar um anime ou mangá sem notar de imediato algum problema grave nele, penso que vi uma boa obra. E se eu começar a notar problemas, inconsistências e defeitos após pensar sobra a história por algum tempo, bom… normal, nenhuma obra é perfeita. De certa forma, acredito que o mesmo se aplique à explicações. Se eu conseguir terminar uma história sem perceber, de imediato, que algo ficou sem uma explicação, então para mim a obra atingiu seu propósito. E se depois eu perceber algo que podia ser melhor detalhado, bem, normal, não existe obra perfeita. Mas ainda assim, isso me faz pensar: qual é o mínimo necessário que uma obra precisa explicar? Sobre seu mundo, seus personagens, sua trama… o quanto de informação nós, como espectadores ou leitores, precisamos ter para sentirmos que aquela história é algo “fechado”, “completo”? Faz um tempo que eu venho pensando isso, e até bem recentemente eu não conseguia formar uma opinião definitiva a respeito disto. Isso porque essa “quantia mínima de explicações” sempre me pareceu algo bastante arbitrário.

Existem obras que terminam em aberto, com absolutamente nada explicado, dado que se espera que saia uma próxima temporada, mas que ainda assim são boas obras, vide animes como Shingeki no Kyojin. E existem animes que não se preocupam em se explicar com palavras, mas ainda assim evitam essa sensação de que ficou faltando algo, como é o caso de Ghost In The Shell: Stand Alone Complex. Pessoalmente, eu não consegui terminar Neon Genesis Evangelion ou Code Geass sem ficar com dezenas de perguntas na cabeça sobre pontos que ficaram sem explicação, mas não tive problema nenhum em terminar algo como Angel Beats ou Kino no Tabi sem realmente ter alguma pergunta sobrando, ainda que basta pensar um pouco para ver a quantia de coisas sem explicação nessas obras. Então… como fica? É algo que vai variar de caso a caso? Não existe nenhum mínimo de informação necessária e tudo depende de como o anime “distrai” o espectador de sua falta de explicação? Uma obra extremamente detalhada e uma lotada de furos no roteiro podem ambas entregar o mesmo sentimento de “completude” da obra? Bom… mais ou menos.

Como eu dizia, até recentemente eu não conseguia formar uma opinião concreta a respeito dessa questão. Quando paramos para pensar com cuidado, poucas são as obras que irão explicar absolutamente tudo sobre o seu universo de uma forma satisfatória. E isso não é se quer necessário para ser uma obra aclamada, vide os mencionados Neon Genesis Evangelion e Code Geass. Mas não é só isso. Eu também nunca tinha conseguido entender lá muito bem porquê me incomodam as referências não explicadas em Neon Genesis Evangelion (por exemplo, por que os angels tem esse nome?) e Code Geass (por que o anime da a entender que tem pessoas vivendo em Júpiter?!), mas ainda assim tenho como uma das minhas histórias favoritas a série de musicas de vocaloid Evilious Chronicles, que é inteira lotada de referências à Bíblia. Eu consigo aceitar sem questionar que do corpo de Eve Moonlit saia uma magia chamada “Pecado Original”, que “Hansel” e “Gretel” separam em sete fragmentos, em Evilious Chronicles, mas ainda assim me incomoda a falta de explicação para termos como “angel“, “Pergaminhos do Mar Morto” ou “Lança de Longuinus”, em Neo Genesis. Por quê? Bom, foi pensando sobre isso que eu cheguei à uma conclusão, ao menos para o meu gosto pessoal. Na minha opinião, o problema não está em dar ou não uma explicação ou no quanto de explicação deve ser dado, mas sim em termos algo que desafia o “senso comum” do mundo no qual se passa a obra.

Indo com um pouco mais de calma. Toda obra, seja ela qual for, se passa em um determinado mundo. E este mundo tem regras. Leis tais quais, digamos, as leis da física. Se um personagem joga um objeto para cima e ele cai, eu não questiono porque o objeto caiu. Se um personagem está debaixo d’água e não consegue respirar, eu não questiono porque ele precisa respirar. Mesmo em um universo com leis completamente diferentes, uma vez que ele seja bem definido e delineado nós paramos de questionar aquilo que nos parece ser natural àquele mundo. Eu não questiono porque o Goku é capaz de soltar esferas de energia com as mãos, nem porque os personagens de Nanatsu no Taizai são capazes de usar magia. Tudo isso cai dentro do que poderíamos chamar de “leis imutáveis” daquele mundo: elas são axiomas. Pressupostos. Não precisam de explicação. Pelo contrário: elas explicam as coisas. Por que o objeto caiu na cabeça do protagonista? Bom, porque se você joga as coisas pra cima, elas caem, simples assim. Isso é o que eu chamo de “senso comum” daquele mundo. Mas… e quando algo desafia esse senso comum? Digamos que a história se passe no Japão moderno. Neste cenário, um personagem joga um objeto qualquer, como uma bola de futebol, para o alto. Mas ao invés de cair, a bola simplesmente fica flutuando no ar. Você, leitor, aceitaria este cenário sem o menor problema, ou se perguntaria por que aquela bola não está se comportando conforme as nossas leis da física dizem que ele deveria se comportar? Imagino que muito provavelmente você iria esperar uma explicação, certo?

Em certa medida, isso acontece com qualquer situação que cause uma quebra naquilo que a obra parece ter estabelecido como as leis de seu mundo. Retomemos o caso de Neon Genesis Evangelion. Qual o problema nos angels se chamarem angels? Bom… apesar da trama do anime se passar no que seria o futuro de quando a obra foi escrita (a obra é da década de 1990 e se passa em meados de 2015), o mundo de Evangelion ficou pré-estabelecido como sendo o nosso mundo, com toda a bagagem histórica e cultural que isso acarreta. Neste sentido, vivemos em um mundo no qual “anjos” são mensageiros divinos conhecidos por ajudar, proteger e guiar a humanidade. Nas doutrinas judaica, cristã e islâmica, anjos foram responsáveis por feitos como passar aos homens as mensagens e avisos divinos, anunciar a vinda de profetas e messias, entre outras coisas mais. E de repente o anime nos apresenta “anjos” com uma aparência que mais lembra algum monstro da ficção científica e que só fazem causar destruição por onde passam. Epa, calma lá! Como assim? Por quê? Quem diabos teve a ideia de chamar essas coisas de “anjos”? Eles tem alguma relação com aqueles narrados nas histórias bíblicas? Se não tem, por que o nome? Se tem, que tipo de relação? Esse nome, em particular, é uma quebra do “senso comum”, daquilo que consideramos como a norma e o natural para o mundo em que a história se passa. Não dar uma explicação a isso é exatamente como jogar uma bola para cima e ela ficar flutuando no ar sendo que a história se passa no nosso mundo. Gera uma série de questionamentos que, se não respondidos, o espectador carrega consigo para o final da obra, terminando-a justamente com aquela sensação de que “faltou coisa”.

Mas é claro, isso não é algo exclusivo de animes que se passem exatamente no nosso mundo ou num futuro próximo ou distante. Code Geass, por exemplo, se passa no que seria um mundo alternativo no qual a política mundial é completamente diferente, dada a presença de uma mega-potência mundial sem par que é o Império Britânico. Apesar disso, o anime aparentemente segue as mesmas leis da física que o nosso mundo. Não se trata de um universo onde todo mundo tenha super poderes, ou onde conseguir um é algo fácil ou natural, como vemos em obras como Dragon ball ou Nanatsu. Neste sentido, o Geass é um problema. Ele é uma quebra desse “senso comum”. Se ter poderes não é algo natural, de onde surgiu esse poder em particular? E bom… o anime não chega a responder exatamente. Sabemos que portadores do Code, capazes de distribuir o Geass ao firmarem um contrato com alguém, existem pelo mundo há séculos. Mas de onde eles vieram, porque tem esse poder e porque podem distribuir poderes é algo que nunca nos é explicado, ao menos não diretamente. Para piorar, as explicações indiretas só pioram a situação. Temos visões de um povo portador do Code vivendo no que fica sub-entendido como sendo Júpiter. Três palavras: What the f*ck?! Eu nem vou me preocupar em tentar listar as perguntas que esse dado levanta, mas fica ai como um outro exemplo de como a quebra do que parece ser o “senso comum” de um mundo contribui para que terminemos a obra pensando que faltou explicações.

Não sei se preciso dizer, mas é claro que o mesmo se aplica a obras que se passam em universos completa e totalmente diferentes do nosso. Embora aqui a situação seja um pouco mais complicada. Isso porque, inicialmente, tudo na obra irá soar como uma quebra do nosso “senso comum”, já que ele sempre parte de um mundo que não tem magia, dragões voando por ai, demônios espalhando o caos, e por ai vai. Neste sentido, o anime ou mangá irá precisar, primeiro, nos mostrar o que é uma lei daquele mundo, um axioma do que é ou não possível, e o que não é. E claro, existem várias formas de fazer isso. Podemos ter um personagem explicando como funcionam certos aspectos daquele mundo. Ou podemos perceber o que é normal ou não a partir das reações dos personagens. Se alguém solta uma bola de fogo e ninguém parece surpreso, podemos assumir que soltar bolas de fogo é algo comum naquele mundo, ou no mínimo dentro de suas leis e normas do que é ou não possível. Uma vez que a trama delimite o que é ou não o “normal” naquele mundo, a partir daí qualquer coisa que fuja desse normal precisa, sim, ser explicada de alguma forma, do contrário a sensação de quebra do “senso comum” novamente ficará na mente do espectador.

Mas para além disso, o que eu digo aqui não se limita ao universo da série. Todas as considerações dadas até o momento valem também para os personagens: uma vez que o anime ou mangá estabeleça qual é a forma “normal” de um personagem agir, qualquer atitude que saia desse normal pode soar como necessitando de uma explicação, com o risco do personagem parecer incoerente ou mal desenvolvido se não for o caso. Aliás, essa é a palavra-chave: coerência. O quanto uma obra precisa explicar? O bastante para se manter coerente dentro de sua própria proposta, seja proposta de mundo, de personagem, de temática ou do que for. O ponto é que essa coerência muitas vezes precisa responder a noções externas à obra. Se a história se passa no nosso mundo, ela precisa ser coerente com esse mundo. Ou se ela se propõe a contar a história de um dado personagem, ela precisa se manter coerente com o que se espera desse personagem. E por ai vai. Isso não significa que a obra não pode fugir do que seria o normal para aquele mundo ou aquele personagem, mas sim que quando isso acontecer é este o momento em que será necessária uma explicação.

É claro, é preciso apontar que nem toda explicação precisa necessariamente ser expositiva. Um bom exemplo disso é o anime Ghost In The Shell Stand Alone Complex. Ao longo de suas duas temporadas, o anime fala muito pouco sobre o seu próprio mundo e como este funciona. Não temos diálogos expositivos explicando cada nova tecnologia que aparece, muito menos um narrador para o fazer, ou qualquer coisa semelhante. Mesmo assim, quando anime termina não parece que nos falta informações sobre aquele mundo. Isso porque apesar do anime não falar, ele mostra. Vemos os personagens interagindo com as novas tecnologia, usando-as e manipulando-as, de forma que vamos nos tornando progressivamente mais e mais capazes de entender como funciona um “cybercerebro” ou uma inteligência artificial. Também vemos a interação dos personagens com outros setores e figuras públicas da política japonesa, de forma que nos tornamos capazes de entender as diferentes hierarquias do serviço público japonês daquele período. E assim vai: o anime nos familiariza com o seu mundo nos mostrando como ele funciona, sem precisar recorrer a diálogos e exposições. Obviamente, não é minha intenção fazer qualquer tipo de hierarquia aqui. Mostrar é bom, mas tem seus limites, e o mesmo vale para o contar. O ponto é que a explicação não precisa ser necessariamente expositiva para estar ali.

Agora, antes de encerrar esse texto, eu gostaria de dar algumas palavras no sentido oposto. Até o momento, eu falei o quanto de explicação um anime precisa ter para ser, digamos assim, “passável”: o mínimo necessário para não percebermos que algo ficou sem explicação. Mas e se formos na direção oposta? Existe um limite máximo de detalhes? Uma quantia a partir da qual se torna simplesmente demais? Bom, na minha opinião… não. Na verdade, justamente o contrário. Quanto mais explicações se dá a uma dada história, mais rica ela vai se tornando. Um bom exemplo poderia ser o anime Shin Sekai Yori. Se passando mil anos no futuro, em uma época onde a humanidade desenvolveu poderes psíquicos e passou a viver em sociedade rurais auto-sustentáveis, o anime explica com riqueza de detalhes absolutamente tudo, desde o funcionamento dos poderes até como surgiu e se desenvolveu aquela sociedade. Outro bom exemplo é o mangá Magi: The Labirinth of Magic, no qual a autora se preocupou em explicar até mesmo porque todos os personagens falam a mesma língua, mesmo sendo de locais diferentes do mundo. Ou, ainda, tem a já mencionada série de musicas de vocaloid Evilious Chronicles, que possui uma riqueza de detalhes e de explicações que dificilmente se encontra par na ficção. Quanto mais detalhada, explicada e delineada uma história for (seu mundo, seus personagens, sua trama, etc.), mais rica ela irá parecer. Então eu não acredito que exista um limite em termos de quantidade de informação. Só que… isso não é dizer que não existe algum tipo de limite.

Eu já falei, em um texto anterior, sobre o que chamei de “o princípio da necessidade“, no qual falei da importância de dar um sentido ao que aparece na história. Se um certo elemento do roteiro é inútil, não ligando nada a lugar nenhum, então não tem porque ele estar ali, é o que defendo. Detalhes são bons, e muitos detalhes tornam um mundo mais rico. Mas se um dado detalhe ou explicação não serve para absolutamente nada, não é usado para nada dentro da história, nem que apenas para não deixar uma ponta solta que incomode ao espectador depois, então… talvez ele pudesse ser retirado. Claro, é muito difícil falar o que é ou não útil em se tratando de algo como explicações e detalhes. É algo que vai depender completamente da habilidade do escritor, que precisa saber o quanto ele pode e precisa falar sobre o seu mundo antes de começar a soar como pura enrolação. E sendo assim, eu termino com essa dupla conclusão. O quanto uma obra precisa explicar? No mínimo, o bastante para se mostrar coerente. No máximo? O quanto o autor for capaz.

Um comentário sobre “O quanto uma história precisa explicar?

  1. Eu adorei o texto, mas existem desinformações sobre EVA. Primeiro sobre a lança Longinius, o nome tem sim sua representação e simbolismo, Longinius é um santo cristão cujo seu nome significa “lança” ele foi o soldado romano que perfurou Jesus, agora assimile isso a Evagelion, a lança Longinius tem esse nome porque está perfurado diretamente em “Deus”. E sobre os anjos, não faz sentido o que ele falou, os anjos são seguidores de Deus que fazem tudo por ele mesmo se for para algo “ruim” como já na bíblia mostra o próprio anjo Gabriel vai usar o “trompete” que irá anunciar o Apocalipse etc. Agora assimile isso, os anjos de Evagelion estão seguindo o criador Adão e fazer sua profecia, eles não precisam ser necessariamente bonzinhos para aquilo fazer sentido.

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