Debate – Objetividade na análise de animes [Parte 1] (Uma colaboração da Blogosfera Otaku BR)

Kino no Tabi // Debate 03/08/2016 // 1
Um debate sobre a objetividade.

Eu vou começar este texto indo direto ao ponto: é possível julgar um anime ou mangá objetivamente? Ou, ainda, existem critérios objetivos para se dizer se uma obra do tipo é boa ou ruim? Ou é tudo puramente questão de gosto?

Na minha opinião, a resposta à primeira pergunta é um sonoro e categórico não. “Objetivo” implica, a meu ver, em algo fora da dimensão humana, e que por isso qualquer um, em qualquer lugar, quando apresentado às evidências, pode constatar. É objetivo que a gravidade, a força gravitacional, existe. É objetivo que a Terra gira em torno do Sol. É objetivo a existência material de algo, como uma árvore em um parque. Mas não é objetivo a pretensa qualidade de qualquer obrar de arte. Isso porque os critérios para definir o que faz ou não uma boa arte são subjetivos e estão em constante mudança.

As artes plásticas são talvez o melhor exemplo. Houve um tempo no qual a mimeses do meio, o realismo da pintura, era o ideal estabelecido para se definir “boa arte”. Ai veio movimentos dos mais variados, incluindo ai cubismo, expressionismo, surrealismo, dadaismo, e por ai vai, que mostraram que é possível você ter uma arte reconhecida como “boa” sem seguir exatamente os cânones estabelecidos. Em outras palavras: muda-se os paradigmas, muda-se a definição de “bom”. O que vai contra a própria ideia de objetividade, algo passível de ser percebido como tal por qualquer um em qualquer tempo.

Entretanto, diferente de todos os demais artigos neste blog, desta vez eu não estou aqui sozinho. O texto que vocês leem abaixo é a primeira parte de um debate realizado com alguns membros da Blogosfera Otaku BR, no qual discutimos justamente o tema colocado acima. Foi uma discussão bem interessante, e acredito que todos os envolvidos levantaram ótimos pontos e colocações. Mas antes de passar para a fala deles, vamos a uma rápida introdução a cada um aqui: assim, temos o Vinícius Marino, do Finis Geekis; o Vitor Seta, do Otaku Pós-Moderno; o Fábio Godoy, do Anime 21; e o Cat Ulthar, do Dissidência Pop. E apresentações feitas, vamos ao debate:

Banner Blogosfera // Debate 03/08/2016 2
Não deixe depois de conferir a página da Blogosfera Otaku BR (link acima).

Vinícius: Você equiparou “objetividade” com “verdade” e “qualidade”. Eu não vejo essas noções como sinônimos, nem acho que ganhamos muito tratando-as como tal.

É verdade que aquilo que define um anime como “bom” ou “ruim” é relativo. Basta navegar pelas críticas de O Túmulo dos Vagalumes (um filme indiscutivelmente primoroso) em sites como o Amazon para se deparar com testemunhos de que é uma “peça de propaganda” e “ode ao negacionismo japonês” da Segunda Guerra Mundial. Quem está certo? Todos? Ninguém? A maioria?

De fato, aquilo que nos faz gostar de uma obra depende apenas de nós. Mesmo fatores horrorosamente mesquinhos e subjetivos como a associação com uma memória negativa (ou com uma pessoa que desejemos esquecer) pode nos fazer vilipendiar uma obra prima.

Hotaru no Haka // Debate 03/08/2016 // 3
Hotaru no Haka – O Túmulo dos Vagalumes

No entanto, é plenamente possível descrever uma obra seguindo categorias objetivamente estabelecidas e julgá-las segundo as mesmas. “Sailor Moon é ruim” nunca será uma afirmação revestida de verdade absoluta. No entanto, é plenamente possível averiguar que, em razão do próprio modelo de produção, a série original foi lançada com vários episódios-filler com animação destoante, detalhes escassos e um aspecto geral incoerente dentro do conjunto. Esta averiguação é independente do juízo que fazemos sobre ela. Amemos ou desprezemos o grande clássico do shoujo, a existência dos fillers (e seus valores de produção dissonantes) não está em questão.

Um exemplo histórico, só para mostrar que isso não se restringe ao anime: Don Quixote, um dos maiores clássicos da literatura e tido por muitos como o primeiro romance da história, está repleto de erros crassos de continuidade. A esmagadora maioria dos críticos considera que eles não minam a qualidade geral da obra. No entanto, eles estão lá. É, para usar suas próprias palavras, “algo fora da dimensão humana”. Nenhum esforço intelectual mudará o fato de que, no curso daquela história, o fato de, por exemplo, Sancho Pança ter sua mula roubada para surgir montado na cena seguinte é um erro de continuidade. Independente do quanto gostemos ou não da obra – ou o quanto venhamos a considerar que o erro foi “proposital” – esse fato é (de novo, nas suas palavras) “passível de ser percebido como tal por qualquer um”.

Don Quixote // Debate 03/08/2016 // 4
Don Quixote (1ª Edição)

Vitor: Eu parto do mesmo principio que o Vinicius. Existem critérios de natureza técnica bem definidos, objetivos, que podemos usar como base na avaliação de uma obras. Podemos classificar uma animação como boa quando a mesma apresenta fluidez, consistência e presença de sakugas. Também podemos classificar um roteiro como bom quando ele apresenta um senso de continuidade afiado, coerência, coesão e correspondência ao universo definido pela obra. Mas como eu disse, isso são classificações. Nós mesmos, quando escrevemos análises para os nossos respectivos blogs, não nos atemos apenas a isso, esse esquema de perguntas e respostas, certo?

Parte essencial da análise de um anime são as visões e o gosto pessoal de seu autor, assim como parte essencial de um produto de entretenimento é a recepção do seu público. Um dos exemplos mais proeminentes nesse sentido é Code Geass. Já li muitas avaliações dando conta de que é um excelente anime tecnicamente, mas que é simplesmente entediante. Pode ser um problema de ritmo, o que ainda seria de natureza técnica, é claro. Como também pode ser uma série bem executada que simplesmente não empolga algumas parcelas do publico. Dentro desse universo, os problemas podem ser vários: a temática que não cai no gosto geral, uma condução incomum que não agrade quem assista, ou simplesmente falta de carisma.

Code Geass // Debate 03/08/2016 5
Code Geass

Ainda há os casos nos quais o autor da analise tem suas próprias preferências dentro dos critérios técnicos. Por exemplo, há os que defendem que um slice of life não necessita de uma animação fluida para uma execução satisfatória. Eu já vou contra essa onda e acho que essa é uma característica essencial aos animes do “gênero”. Essas opiniões são extremamente voláteis, já que o mercado vai moldando as tendencias a cada período de tempo, como o Diego disse no texto de abertura.

Resumindo, podemos classificar objetivamente um anime dentro de uma listinha pré-definida de itens técnicos. Mas isso nunca vai ser o suficiente para uma análise. Afinal, não somos robôs: a subjetividade nos é essencial.

K-On // Debate 03/08/2016 6
Kyoto Animation é um exemplo de um estúdio conhecido pelo seus slice of lifes com animação fluida.

Fábio: Antônio gosta de azul e Valéria gosta de vermelho. Isso é gosto pessoal, e não é mesmo algo “mensurável”. Por que um gosta de azul e a outra gosta de vermelho? É genético? Foi algo em suas infâncias, sei lá, talvez suas respectivas mães se vestissem com essas cores? É por causa da primeira letra do nome? É porque eles não existem e eu os inventei desse jeito só para poder argumentar? Nós nunca vamos saber.

Não dá para dizer que azul é melhor ou vermelho é melhor. Mas é facilmente observável se algo é azul ou vermelho. Ou mais azul ou mais vermelho. E por isso até mesmo Antônio e Valéria, que discordam sobre qual cor é melhor, podem separar todas as coisas do mundo em coisas azuis e coisas vermelhas. Eles concordaram com uma convenção e agora são capazes de categorizar coisas baseados nessa convenção. Isso é perfeitamente objetivo.

Existem coisas que certamente são indicativos de qualidade, como algumas que o Vinicius e o Vitor citaram. E existem coisas completamente subjetivas, como o realismo nas artes plásticas que o Diego mencionou ou a cor, que o Antônio e a Valéria valorizam tanto. Mas mesmo quando tratamos de algo totalmente subjetivo, como cores ou traço anatômico, até podemos discordar sobre o que é melhor ou pior, mas ainda somos capazes de avaliar segundo critérios bem definidos. Talvez você não goste tanto assim de um desenho mais anatômico, de uma arte mais realista, mas você é capaz de, estudando a história da arte, reconhecer pinturas clássicas renascentistas como tais e comparar as técnicas usadas em diferentes obras de diferentes artistas desse mesmo movimento artístico.

Lucky Star // Debate 03/08/2016 7
Mesmo que você não goste de um determinado estilo de arte, você ainda pode entender as regras que o regem e dizer se elas foram bem aplicadas ou não.

Cat: A pergunta da vez é que se é possível julgar um anime ou mangá objetivamente? E se existem critérios objetivos para se dizer se uma obra do tipo é boa ou ruim? Ou é tudo puramente questão de gosto?  Categoricamente, na respectiva ordem, respondo que sim, sim, e não. Agora devo tecer alguns comentários para explicar o que eu penso.

Esse é um questionamento que atravessa a própria esfera dos animes/mangás, é uma pergunta que se aplica a qualquer produção artística, seja um livro, seja um filme, ou seja uma pintura. Desde os primórdios da humanidade até recentemente no século XX, onde houve uma desconstrução dos antigos valores da arte, os artistas buscavam os mais altos padrões de excelência e qualidade, levando a técnica a níveis nunca antes vistos, como Leonardo da Vinci e Michelangelo. Havia uma clara objetividade, que buscava uma perfeição técnica, obedecendo padrões estabelecidos que eram aperfeiçoados geração após geração. Critérios específicos que obedecidos criavam uma obra harmoniosa e tecnicamente boa.

A arte moderna tentou subjetivizar a arte até um ponto em que qualquer coisa pode ser considerada genial, boa e bonita. Sinceramente, comparem o Davi de Michelangelo, esculpido diretamente de um pedaço bruto de rocha, com uma pedra de 500kg tirada da natureza e colocada em um museu de arte moderna, ou a Última Ceia de Da Vinci com uma qualquer rabisco geométrico que se faz todo dia. Não vou entrar nos méritos que propiciaram o afastamento dos valores objetivos universais e o surgimento deste relativismo estético do século XX, pois demandaria uma discussão própria.

A Última Ceia // Debate 03/08/2016 // 8
A Última Ceia, de Da Vinci.

A qualidade de uma obra não se resume apenas a uma questão de gosto pessoal, mas sofre interferências de elementos que são objetivamente analisáveis. Como não admirar o belo trabalho visual, com sua perfeição técnica de desenho, de mangakás como Kentaro Miura e Takehiko Inoue? Ou um anime com uma animação primorosa? E quanto ao enredo, quem não fica contente com um enredo bem estruturado, com personagens bem construídos e que consegue prender a atenção do leitor? Sem padrões estéticos não dá para determinar qualidade.

Para citar exemplos, em muitos casos uma perícia técnica se faz presente e é estritamente necessária, como em um campeonato de ginástica artística ou um concurso de dança, onde o subjetivismo não é aceito, não adianta em nada você chegar na apresentação e se contorcer no chão dizendo que é uma expressão de sua arte que não pode ser analisada por critérios objetivos, simplesmente vão rir de você. No mundo dos animes/mangás não é diferente, para um mangaká receber o prêmio Tesuka, por exemplo, deve ser analisado e aprovado por uma comissão de autores experiente que utilizam critérios objetivos para mensurar a qualidade da obra apresentada.

Não é como se eu estivesse simplesmente refutando toda a importância do subjetivismo. O gosto pessoal tem sua relevância, todo mundo tem aquele anime que sempre gostou e acha o máximo mesmo sendo alvo de muitas críticas quanto a qualidade técnica, artística, etc. É plenamente possível gostar e achar bom seja lá o que for. O meu ponto de vista se baseia no conceito de que além da esfera do gosto pessoal, que efetivamente existe, há critérios objetivos supraindividuais, até mesmo arquétipos. Por exemplo, O Nascimento de Vênus de Botticelli é uma obra de qualidade, que conjuga perfeição técnica com beleza, mas você pode simplesmente não gostar dessa pintura, mas ela continua possuindo qualidade inerente a ela mesma.

O Nascimento da Vênus // Debate 03/08/2016 9
O Nascimento da Vênus.

Fábio: Sem dúvida é possível até mesmo gostar de desastres com Ataque dos Titãs, o mangá =D

Enfim, não vim trazer mais argumentos, só citar uma curiosidade já que a Última Ceia de Da Vinci foi mencionada: sem dúvida é bela, mas Da Vinci não a executou com o primor com a técnica exigia, e o resultado é que ao invés de ser um afresco durável, como afrescos são feitos para ser, é uma porcaria que descasca em poucas décadas e precisa de um novo restauro. Visualmente, quando era novo e quando está recém-restaurada, ninguém vai dizer que não é bonita, que as pinceladas, proporções, perspectiva, etc, não foram executados com toda a maestria que seu estilo e sua época pregavam, mas ainda assim Leonardo cometeu uma falha técnica imperdoável: ele pintou sobre a parede já seca, ao invés de, como o nome da técnica sugere, ter pintado quando ela ainda estava fresca. É um problema de material, se quiserem podem comparar às folhas transparentes dos mangás atuais.

Shingeki no Kyojin // Debate 03/08/2016 10
Volume 1 de Shingeki no Kyoujin – Ataque dos Titãs.

Vinícius: É possível passar uma vida toda elencando “injustiças” no mundo da arte. De como alguns artistas foram superestimados enquanto que outros amargaram no esquecimento, muito embora produzissem trabalhos sem igual. É uma das anedotas mais conhecidas da internet, por exemplo, que Cidadão Kane, considerado por muitos o melhor filme da história do cinema, perdeu o Oscar de 1942 para Como Era Verde Meu Vale.

Não me parece, no entanto, que isso esteja em conflito com o que o Gato de Ulthar falou. Por mais que critérios de avaliação artística se proponham objetivos, as pessoas que os utilizam são meros humanos. E, como tais, são passíveis de deixar a emoção e os vieses pessoais falarem mais alto.

Isto não é prova de que a arte é subjetiva, mas sim que o Establishment artístico o é. Que a escolha e perpetuação dos clássicos esteja à mercê dos especuladores do mercado de pinturas, de demagogos ufanistas, de “formadores de opinião” com agendas políticas e da pressão comercial do público jamais reduzirá o mérito d’ O Nascimento da Vênus de Botticelli, d’A Criação de Haydn ou (para voltar aos animes) de Laputa de Miyazaki.

Laputa // Debate 03/08/2016 11
Tenkuu no Shiro Laputa

(Continua na segunda parte)

Outros artigos que podem lhe interessar:

Os animes são uma mídia para adultos? (Uma colaboração da Blogosfera Otaku BR)

Qualidade importa?

Tempo, mudança e o coming of age

Imagens (na ordem em que aparecem):

1 – Kino no Tabi, episódio 9

2 – Blogosfera Otaku BR

3 – Hotaru no Haka, pôster promocional.

4 – Capa da primeira edição de Don Quixote (Wikipedia).

5 – Code Geass, episódio 1.

6 – K-ON, episódio 1.

7 – Luck Star, episódio 1.

8 – A Última Ceia, de Da Vinci (Wikipedia).

9 – O Nascimento da Vênus, de Botticelli ( Wikipedia)

10 – Capa do volume 1 de Shingeki no Kyoujin.

11 – Tenkuu no Shiro Laputa, pôster promocional.

Um comentário sobre “Debate – Objetividade na análise de animes [Parte 1] (Uma colaboração da Blogosfera Otaku BR)

  1. Eu penso analise como um processo de observação, descrição e identificação de relações. Também acho que pouquíssimas pessoas(contando no dedo em todo o planeta) teriam conhecimento o suficiente para analisar TODOS os aspectos de uma obra. Nem quem faz os próprios animes talvez possua o no-hall… Também acho que, na analise, não caberia juízo de valor (o que é função da critica). Se é possivel uma analise totalmente objetiva? Acho que não. Porquê os valores internos de quem analisa podem enviesar até inconscientemente no modo como alguém percebe algo. Mas por outro lado, acho muito bem que existem graus de objetividade que dependem da intenção de quem analisa, mas que nunca chegariam a 100%, de forma isenta.
    Resumindo, acredito na objetividade como intensão, mas acho que objetividade TOTAL é impossível.
    Off topic: Analises >>>> Criticas.

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