“Adulto” não significa “maduro” (e nem “bom”).

Digimon Tamers Fullmetal Alchemist Ghost in the Shell // Ensaio 04/03/2016 // 1
Digimon Tamers, Fullmetal Alchemist Brotherhood e Ghost In The Shell SAC: boas obras podem surgir direcionadas a qualquer demografia.

Vou começar este texto já com o que é basicamente o seu argumento central: o público alvo de uma obra, seja ele qual for, nada nos diz sobre a sua qualidade. Isso é verdade não importa nem mesmo o quão amplo ou diversificado é este público alvo. Por exemplo, animes voltados para o nicho otaku podem muito bem ser tão bons quanto qualquer anime voltado para o público em geral. Igualmente, uma obra qualquer voltada para o público masculino pode ser tão boa quanto qualquer uma voltada ao público feminino. E vice versa, em ambos os exemplo. E é claro: uma obra voltada para crianças pode ser tão boa quanto uma voltada para adultos. Isso não é dizer que todas as obras estão em pé de igualdade: certamente existem péssimos animes voltados para todos os mais variados públicos. E isso certamente não é dizer que obras com públicos diferentes não irão usar de uma série de artifícios diferentes para atingir a audiência que desejam (e é por isso que existe, por exemplo, classificação indicativa). Isso é simplesmente dizer que uma obra excepcional pode vir de qualquer lugar, e você nunca realmente sabe o quão boa ou ruim é uma obra até experimentá-la por si mesmo.

Isso dito, entremos agora mais diretamente no assunto deste texto. O que me motivou a escrever sobre este assunto é o fato de que os otakus, pelo menos aqui no Brasil, parecem ter certa… “estima” (para não falar “obsessão” mesmo) para com o termo “seinen“. No Japão, o termo é um indicativo de demografia, dizendo que uma dada revista é direcionada a jovens adultos (e sim, uma dada revista. O termo é mais usado na industria de mangás, e não é aplicado normalmente a animes, light novels, e outras mídias). Já aqui no Brasil, o termo passou a ser usado para designar qualquer tipo de obra com conteúdo “inapropriado” para crianças, como violência e erotismo, ou para designar histórias complexas, de trama intrincada, realista, ou com um ritmo mais lento. Basicamente, tudo o que não for um shounen de luta ou um shoujo de romance. Sinceramente, cada uma destas “categorias” ou “classificações” (em fato, públicos-alvo) mereceriam um texto por si só, tendo em vista como as pessoas costumam associar certos clichês a uma dada demografia, como se obras com combate fossem obrigatoriamente para meninos e obras com romance fossem obrigatoriamente para meninas (e ai quando você lembra que Toradora, um romance, tem um mangá publicado numa revista shounen, as pessoas meio que não processam a informação direito), mas para este texto eu vou me ater apenas ao seinen.

Boku Dake ga // Ensaio 04/03/2016 // 2
O termo “seinen” é mais aplicável à industria de mangás. Quando muito, no máximo poderíamos considerar como “anime seinen” os animes adaptados de um mangá seinen, como é o caso de Boku Dake ga Inai Machi.

Antes de mais nada, então, vamos explicar melhor qual é o problema com esse termo (porque sim, há um problema com ele). Eu disse, mais acima, que as pessoas veem o “seinen” como basicamente tudo aquilo que animes como Naruto ou One Piece não são: recheados com violência gráfica extrema, várias cenas de insinuação sexual, história complexa e difícil de entender e basicamente tudo o que eu já falei no parágrafo anterior. E ai você lembra que K-ON, o anime sobre garotas do colegial tomando chá na sala do clube de musica, foi publicado em uma revista seinen. É… Vejam, para quem não sabe ainda, no Japão os capítulos dos mangás são publicados semanal ou mensalmente em revistas periódicas, com cada edição da revista tendo em si uma vastidão de capítulos de obras diferentes. O termo “seinen“, e também termos como shounen, shoujo e outros nessa linha, se aplica a toda a revista. Ele determina o público alvo da revista, não de cada mangá individual publicado nela. Claro, todas as obras publicadas em uma revista seinen esperam atingir um público mais adulto, mas se por “adulto” a obra entende “otakus de 18 anos” ou “empresários de 35” vai depender completamente de cada autor. Termos como seinen não são uma classificação indicativa no exato mesmo sentido que as que temos aqui no ocidente. Inclusive, quando K-ON foi publicado no Brasil, pela editora NewPop, o mesmo foi classificado como “Livre”, menor mesmo que muitos shounens, normalmente marcados como para maiores de 14 ou 16 anos.

E é aqui que está o problema: o termo diz muito pouco de uma obra. Quando muito, ele diz que a revista na qual a obra é publicada dá autorização ao autor para tratar de temas mais sérios e pesados, mas se o autor vai ou não fazer isso é algo totalmente a seu critério. Inclusive, esse talvez seja um dos maiores problemas em usar o termo como se fosse um gênero, como algumas pessoas fazem: enquanto termos como “ação”, “aventura”, “fantasia”, “romance” e outros dão ao espectador uma boa noção do que esperar do anime, o termo “seinen” não nos diz absolutamente nada. Mas dito isso, esse é o menor dos problemas com o uso do termo, honestamente. Porque, vejam bem, usar um termo, aqui no Brasil, atribuindo a ele um significado diferente do seu local de origem, o Japão, não é realmente nada de novo, nem um problema em si mesmo. Ressignificações de palavras acontecem o tempo inteiro, e é inclusive algo do que eu já tratei no meu texto sobre se anime e desenho são a mesma coisa. E em termos práticos: contanto que aquele que fala e aquele que escuta compreendam a mesma coisa, a linguagem cumpriu seu papel. Então se uma pessoa fala “seinen” querendo insinuar uma história com as características que eu mencionei no segundo parágrafo e a pessoa que escuta entende isso, então o uso do termo é válido, pelo menos. O real problema, contudo, está justamente não no termo em si, mas no que as pessoas entendem por ele.

K-On // Ensaio 04/03/2016 // 3
O anime de K-ON, que conta a história de um grupo de garotas que formam o clube de musica do colégio, é um slice of life moe que adapta um mangá publicado em uma revista seinen

Aqui está o problema: quando as pessoas usam o termo “seinen“, o que elas querem realmente dizer é que o anime em questão é “maduro”. E ele é “maduro”, nessa visão, normalmente por lidar com aspectos gráficos (de novo, violência e erotismo), narrativos (histórias mais realistas, de ritmo mais lento, por vezes complexas) ou temáticos que não seriam adequados para menores de 18 anos. Finalmente, o termo também implica certa superioridade sobre outros de função semelhante, como o shoujo ou o shounen (e caso alguém esteja se perguntando porque eu nem citei josei ainda: estranhamente falando, é raríssimo alguém usar esse termo por aqui, ao menos que eu saiba, então eu meio que estou propositadamente ignorando a existência do mesmo. Isso dito, seria possível argumentar que o uso do termo “seinen” aqui no Brasil engloba o que seria também o josei, de forma que o termo é usado para definir não as obras voltadas para adultos do sexo masculino apenas, como é no Japão, mas sim para adultos num geral, independente de gênero. Mas se seria uma argumentação precisa, ou um exagero, eu mesmo não sei ainda). Em essência, o que as pessoas normalmente querem dizer é: “este anime é para adultos, portanto ele é bom” (ou, no mínimo, melhor do que os animes voltados para crianças). E sinceramente: isso não poderia estar mais errado.

Parte do problema aqui retorna a algo que eu já comentei no meu texto de se anime e mangá são coisas de criança, e se resume à associação que as pessoas fazem entre “conteúdo adulto” e “obra madura”, como se ao primeiro necessariamente seguisse o segundo. Isso está errado por um motivo bem simples: o que determina se uma obra será madura não é seu conteúdo, mas sua execução. Em outras palavras, é plenamente possível você ter uma obra lotada de conteúdo adulto, como violência, sexo e palavrões, e ela ainda ter uma execução imatura. Isso é bastante comum em obras que abusam do chamado “shock value“, se preocupando apenas em chocar sua audiência sem necessariamente querer dizer algo com isso. É um recurso usado sobretudo em animes que apelam para o gore exacerbado, substituindo desenvolvimento de personagem e da trama por sangue e corpos desmembrados. E claro, o ecchi é outro bom exemplo, com cenas que beiram o erotismo substituindo qualquer interação significativa entre os personagens. Obviamente, isso não significa que estes recursos não possam entreter, mas eu diria que eles são comparáveis a agitar chaves na frente de um bebê: você vai entretê-lo, sem duvida, mas isso não significa que exista algo de profundo ai. E hey, não tem nada de errado em querer ver obras mais simples, mesmo simplórias, em busca de algum entretenimento mais fácil. Eu mesmo gosto de animes que muito bem se encaixariam nessa linha. O que seria errado é procurar profundidade nesse tipo de obra somente por terem conteúdo adulto.

Momo Kyun Sword // Ensaio 04/06/2016 // 4
Momo Kyun Sword é um bom exemplo de um anime com história e personagens bastante simples, mas que tem uma classificação indicativa mais alta devido ao ecchi constante.

Mas se violência e erotismo não determinam que uma obra é “madura”, então o que determina? Bom, isso é um pouco difícil de dizer, em parte porque não me parece haver um “set” de regras para dizer o que é maduro ou não: as pessoas meio que apenas reconhecem uma obra do tipo quando a veem. Mas depois de pensar um pouco, eu ao menos consegui concluir o que faz uma obra parecer madura pelo menos para mim. E, em fato, isso é algo que poderia ser resumido em uma só palavra: respeito. Respeito pelo seu conteúdo: uma obra madura deve saber do que fala, trabalhando seus temas com o devido conhecimento e a devida profundidade. Também respeito pelos seus personagens, que devem ser bem trabalhados e desenvolvidos, ou que pelo menos devem soar como humanos, ao invés de arquétipos genéricos. E, finalmente, uma obra madura deve ter respeito pela sua audiência, deixando a mesma inferir, interpretar e tirar as próprias conclusões sobre aquilo que está vendo, ao invés da obra constantemente tentar martelar qual seria a “moral da história” na cabeça das pessoas. E enquanto tudo isso é bastante difícil de fazer e exige considerável esforço e capacidade por parte dos autores, nada disso é realmente impossível de ser feito em obras voltadas para crianças e adolescentes.

Eu reconheço: isso é, sim, mais difícil de ser feito em obras infantis. A meu ver, a grande diferença entre uma boa obra infantil e uma boa obra adulta está na própria intenção da mesma: normalmente, obras infantis tendem a enfatizar ou sedimentar, na sua audiência, uma dada moral (“você não deve agir assim”); já obras adultas tendem a justamente questionar ou relativizar uma moral estabelecida, levando o espectador a refletir sobre o assunto que for (“é realmente errado agir assim?”). E o problema recai em que é muito difícil tentar passar uma moral sem soar que se está subestimando a inteligência da sua audiência. Além disso, um maniqueísmo exacerbado, presente em muitas histórias para crianças, muitas vezes é visto como negativo, justamente por não nos fornecer personagens complexos ou profundos, mas sim apenas arquétipos simplórios do bem e do mal. O resultado disso são obras onde o vilão quer “dominar o mundo” só porque sim e que ao final do episódio o protagonista aparece para dizer “o que aprendemos no episódio de hoje”. Não dizendo que obras como estas eram ruins, ou que não cumpriam seu propósito, mas são obras imaturas, que tratam a sua audiência como incapazes de compreender sutilezas.

Kino no Tabi // Ensaio 04/03/2016 // 5
Kino no Tabi é um bom exemplo de um anime adulto e maduro, mas que não usa de elementos demasiado gráficos para contar sua história.

Mas enquanto pode ser mais difícil para obras infantis lidarem com isso, certamente não é impossível. A franquia digimon, por exemplo, soube fazer isso muito bem, sobretudo em suas séries Adventure e Tamers. São obras que souberam tocar em temas maduros, como adoção, divórcio, e por ai vai, de uma forma talvez não profunda, mas certamente respeitosa, coesa e, acima de tudo, sem subestimar a sua audiência. Além disso, algumas pessoas parecem se esquecer que a classificação indicativa não se limita a separar as obras em “Livre” ou “+18”. Há todo um espectro nesse meio, e quando mais próximo do “+18” mais fácil é para uma obra trabalhar certos temas mais maduros com a devida profundidade. Hourou Musuko, o anime, poderia facilmente cair na classificação de +12 do sistema brasileiro, e ainda assim é bastante maduro na forma como trata seus temas, personagens e sua audiência. O problema é que quanto mais próximo do +18 também mais próximo chegamos do outro extremo, onde uma obra se torna imatura por deixar de lado o trabalho em cima de seu tema, personagens ou respeito à audiência para se focar em mutilações, sexo, ou qualquer outra coisa nessa linha.

Claro, talvez nessa minha interpretação do termo “maduro” precisemos considerar “níveis” de maturidade, conforme uma obra trata deste ou daquele tema em maior ou menor profundidade. Ou talvez pudéssemos dizer que a obra trabalha este ou aquele tema de forma madura, ao invés de dizer que a obra como um todo o é. Talvez fosse mesmo mais útil substituir o termo por algo um pouco mais descritivo, como “profundo”, ou “filosófico”, ou qualquer coisa do gênero (embora provavelmente qualquer outro termo viria com seu próprio conjunto de problemas). Seja como for, porém, resta ainda uma questão a ser discutida. No começo do texto, eu disse que havia uma confusão de termos na qual uma obra tendo conteúdo adulto era vista como madura e boa. Destes três “elementos” (conteúdo adulto, maturidade e qualidade), eu procurei mostrar como o primeiro e o segundo não estão necessariamente relacionados, bem como que é possível ter o primeiro sem ter o terceiro. Mas resta ainda um pareamento a ser pensado: o fato de uma obra ser madura significa que ela é boa?

Hourou Musuko // Ensaio 04/06/2016 // 6
Ainda que poderia facilmente ser classificado como para maiores de 12 anos no Brasil, Hourou Musuko consegue trabalhar seus temas de forma bastante profunda e madura.

Bom… Sim. Se uma obra respeita a si própria, suas temáticas e sua audiência, eu acho extremamente difícil que ela sejam ruim. Não vou dizer que é impossível, mas, sinceramente, o autor que conseguir esse feito provavelmente tem algum tipo de talento especial em arruinar as coisas ao ponto de merecer algum reconhecimento por isso. Claro, por mais madura e respeitosa que uma obra seja ela nunca irá agradar a todos. Gosto pessoal não é algo que possa ser medido, e às vezes por melhor que seja a obra a pessoa simplesmente não gosta daquele tema, ou daquele gênero, ou daquele estilo de arte, ou qualquer coisa que seja. Fora isso, existe também a questão do tempo: às vezes a pessoa simplesmente não está no momento “certo” para ver esta ou aquela obra, tipo quando você já viu tantos animes de um mesmo gênero em sequência que você simplesmente precisa ir ver alguma outra coisa, pouco importa o quão bons sejam outros animes daquele gênero. Ou, também, quando você simplesmente não tem ainda conhecimento a respeito dos temas trabalhados em uma dada obra, o que pode fazer ela lhe soar como excessivamente confusa e desconexa. Apesar disso, acredito que se a obra for mesmo madura, até aqueles que não gostarem podem muito bem coloca-la naquela categoria de “não curti, mas é boa pra quem gosta desse gênero/tema”, na qual vez ou outra cai estes ou aquele anime ou mangá.

Finalmente, antes de encerrar o texto deixo aqui uma última consideração sobre esse tema: considerando que gosto pessoal ainda tem um considerável peso na hora de dizer o quanto uma obra apela a você ou não, e sendo bem realista, acaba que obras imaturas podem entreter tão bem quanto, ou mesmo mais, do que obras mais maduras. Às vezes você simplesmente não quer drama emocional pesado, desenvolvimento de personagem ou temáticas complexas. Às vezes você só quer ver peitos balançando, ou personagens lutando ao ponto de se estraçalharem, ou comédia ofensiva e de humor negro. Às vezes tudo o que você quer é “desligar o cérebro” e relaxar de um dia cansativo enquanto assiste algo divertido, engraçado ou bobo. Nem tudo precisa ser sério. Ninguém aguentaria. Não acho que exista um problema inerente com a existência de obras que abusem de coisas como gore ou ecchi (ainda que eu pessoalmente não seja lá muito aberto a assistir obras assim), ou que seja nada mais do que lutas atrás de lutas. O problema está em levar esse tipo de obra a sério demais, tentando defendê-las como sendo “profundas” ou “maduras”. Porque, sinceramente, elas não são. Classificação indicativa é um aviso, não um medidor de qualidade. Pense sobre isso a próxima vez que for exaltar uma obra por ser “adulta”.

Imagens (na ordem em que aparecem):

1 – Posters de divulgação de Digimon Tamers, Fullmetal Alchemist Brotherhood e Ghost in the Shell S.A.C.

2 – Boku Dake ga Inai Machi

3 – K-ON!, episódio 1

4 – Momo Kyun Sword, episódio 1

5 – Kino no Tabi, episódio 1

6 – Hourou Musuko, episódio 1

3 comentários sobre ““Adulto” não significa “maduro” (e nem “bom”).

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