Uma pequena crítica à crítica.

Aquele que com frequência lê blogs, assiste vlogs ou interage em redes sociais voltadas para o anime e mangá, talvez perceba uma ou outra similitude entre as coisas que são ditas nestas diferentes mídias. Mais especificamente, talvez percebe como a crítica (entendida aqui como sinônimo de “análise”, não como o “falar mal” de algo) é normalmente executada de formas bastante semelhantes. Qualquer um pode notar: existe um padrão que rege a crítica. Algo que exige daquele que critica mais do que a sua pura e simples opinião. Afinal, o que diz a opinião? Que valor pode o gosto individual ter? Via de regra: nenhum. “Gosto não se discute”, é o que diz o dito popular. Mas a crítica se discute. Se diverge. Se contesta. Ou, mesmo, se concorda. Em todos estes movimentos, temos uma constante: a crítica pode ser criticada, a opinião não. E isso por conta da própria natureza da crítica, que se propõe ser, acima de tudo, objetiva. Como tal, ela deve seguir uma série de regras. O mal emprego destas regras, por sua vez, é o que permite que a crítica seja contestada. Dizer que não gosta de um personagem é uma opinião, que não pode ser contestada. Dizer que ele foi mal desenvolvido, porém, é uma crítica, que exige, idealmente, uma prova. E se o crítico falha em provar sua análise, é neste momento que surge a crítica à crítica. Você afirma que um personagem é mal desenvolvido. Eu afirmo o contrário e exponho o porque de achar isso. Neste momento, pode se instaurar um debate que leve a uma nova conclusão, ou o crítico criticado pode rever sua posição, ou mesmo a crítica à crítica pode ser sumariamente ignorada. O ponto final não importa, na verdade. O que é interessante de verdade é o fato dessa discussão ser possível.

Esta é a base da crítica tal e qual a conhecemos hoje. Ela é mais do que a opinião de quem a tece. Ela segue regras pré-definidas, busca responder questões pré definidas (este personagem é bem desenvolvido? Esta trilha sonora é bem executada? Esta história é consistente?) e, acima de tudo, pode ser contestada por qualquer um que se prove capaz de expor um argumento melhor. Agora eu pergunto ao leitor: isso não lembra alguma outra coisa? Quando posto nestes termos (objetividade, método a ser seguido, problemática a ser resolvida, contestabilidade), não parece que, ao invés da crítica de animes e mangás, estamos a tratar de alguma outra coisa? A mim parece. E digo o nome dessa outra coisa: ciência. Tratamos a crítica (seja a literária, seja a de filmes, ou, finalmente, a de animes e mangás) como tratamos a ciência. E, na minha opinião, isso não é pura coincidência. Walter Benjamin, em seu texto sobre o narrador, nos informa da morte do mesmo. No mundo moderno, a narração cedeu espaço à informação. Neste sentido, o contar algo deu lugar ao provar algo. Pensando sobre isso, vejo que vivemos em um mundo onde impera a dúvida. E sendo assim, tudo precisa ser provado. Cada testemunho exige prova. Cada comentário exige embasamento. Cada opinião exige algo que lhe de respaldo. A forma científica, caracterizada pela objetividade, pela verificabilidade e pela universalidade da experiência, penetrou profundamente na nossa sociedade. E uma expressão disso é a crítica: opinião travestida de método objetivo.

Que melhor exemplo do que digo que as famosas “notas”? Presentes nos mais variados blogs, vlogs e redes sociais, com excelente exemplo ficando para o site My Anime List, existe algo mais contraditório do que elas? Pensem, por um momento, no processo que é executado aqui. Espera-se daquele que atribui a nota que avalie ao anime como um observador neutro avalia a um objeto. Desta avaliação, surgirá uma nota, normalmente de 0 a 10, que expressa o que o avaliador pensa da obra que observou. Assim, digamos que eu, observador neutro, analiso a obra e constato que os personagens são bem desenvolvidos, mas a trama é demasiado inconsistente e a animação no geral foi medíocre, ainda que a trilha sonora tenha sido magistral, de forma que ao final destas considerações determino que a obra merece uma nota de 6,5. Minha pergunta: de onde raios saiu esse número? Em nenhum momento da análise se quer se considerou o surgimento de números e, ainda assim, de alguma forma o resultado final da análise é um resultado numérico. Por que? Como? E por que esse número em específico? Por que não 6, ou 7, ou 6,51, ou 6.49? Verdade seja dita, não existe ai uma lógica efetiva. Vivendo em nossa sociedade ocidental moderna, já fomos condicionados a pensar no 10 como signo de excelência e no 0 como signo de fracasso, um dos pequenos frutos do nosso “belo” sistema escolar. Assim, um anime que considerarmos excelente merecerá um 10, ao passo que um anime que considerarmos medíocre receberá um 0. Qualquer coisa no meio disso merece uma nota no meio disso, mas essa nota é… complicada. Extremos são fáceis de ver, mas o meio não é tão simples. E nisso nós simplesmente atribuímos uma nota que sentimos ser a mais adequada. Este anime é ruim, mas ainda gostei desta ou daquele elemento, então darei um 4. Já este é muito bom, mas tem algo nele que me incomoda, então darei um 9. De forma inteiramente subjetiva eu seleciono um número, maior símbolo de objetividade na contemporaneidade. Ora, que situação esquizofrênica essa nossa, não acham?

Bom, neste momento o leitor poderia objetar que nem toda crítica é feita dessa maneira. Por mais que esse recurso de atribuição de notas seja ainda largamente usado, muitos críticos já abandonaram tal prática. Assim, muitos se resignam a analisar o anime, buscando determinar objetivamente apenas se ele é bom ou ruim. Quanto a isto, eu já mencionaria que são raros os casos em que o crítico se propõe a atirar o anime em apenas uma de duas caixinhas. Mais vezes do que não, o resultado final de uma crítica ainda é algo no meio destes dois extremos. “O anime não é excelente, mas é melhor que muitos por ai”. Ou “é, tem coisa bem melhor, mas talvez valha a pena dar uma olhada”. Frases como essa povoam aos montes qualquer texto que se proponha a analisar um anime ou mangá. Podemos dizer que estas considerações são objetivas? Não há nelas uma subjetividade intrínseca? Mas tudo bem, para o bem do argumento vamos propor que alguém procure apenas classificar o anime como bom ou ruim. Neste momento, eu já chamaria novamente a atenção para o quanto o método científico penetrou na opinião. Essa distinção entre “bom” e “ruim” não é mais do que o oposto binário central na ciência travestido com outros termos. A que oposto me refiro? “Verdadeiro ou Falso”. A pergunta é uma só (“É este anime uma boa obra?”), mas a ela cabem duas respostas: verdadeiro (bom) e falso (ruim). Mas… Bom ou Ruim para quem? Ou, deixando essa pergunta de lado, bom ou ruim de acordo com que critérios? Como se objetiva palavras tão subjetivas como “bom” e “ruim” de forma que elas expressem não uma opinião, mas sim o resultado de uma crítica aparentemente cuidadosa e meticulosamente elaborada?

Para explicar isso, recorremos ao mais básico da crítica literária. Pegamos um anime e o segmentamos, a fim de analisar cada uma de suas partes. É o processo que já descrevi mais acima: observamos se os personagens são bem construídos e coerentes em personalidade, se a trama é coerente ou se apresenta furos, como é a sonoplastia, como é a animação e por ai vai. E nisso novamente vemos como a forma cientifica (ou, mais especificamente, como a forma matemática) penetra em nossa consciência de forma quase imperceptível. Dividir um problema em partes menores, solucionar a estes partes e combinar a solução das partes para ter a solução do todo. Gente… Isso é Descartes! Quer algo mais cartesiano do que isso? Mais matemático do que isso? Estamos tratando da análise de uma obra de arte da exata mesma forma que tratamos uma equação matemática! Isso é realmente uma boa ideia? É realmente o melhor método para se dizer se uma obra é boa ou ruim? Bom, na minha opinião… não. E isso sobretudo por dois motivos. Em primeiro lugar, porque estes critérios são… complicados. Algum tempo atrás eu fiz uma postagem intitulada “qualidade importa?” em que discutia como os critérios de análise que consideramos objetivos não são assim tão objetivos. Em resumo, o que defendia ali é que a partir do momento em que estes não são critérios universais, é incoerente tratá-los como objetivos. Digamos que eu queria medir se uma esfera é uma esfera perfeita. Eu usarei dos medidores apropriados e medirei a todas as esferas que me derem, todas elas da mesma forma. Mas e se eu quiser saber se um anime é perfeito? Alguém concordaria em usar os mesmos critérios de análise para todos os animes existentes? É justo julgar uma comédia da mesma forma que um drama? Ou um shounen da mesma forma que um seinen? Obviamente que não. Então que método objetivo é este em que o método muda a cada novo objeto? Suponhamos novamente o mesmo exemplo das esferas, mas agora a cada esfera que me dão eu uso um método diferente, um aparelho diferente, mesmo uma unidade de medida diferente… Talvez nem tanto questionariamos a objetividade dos dados (embora pudéssemos questionar a subjetividade dos métodos), mas restaria a pergunta: o que raios eu descobriria com tal pesquisa?

Mas mesmo essa crítica ignora um outro problema fundamental: a divisão em partes não faz o menor sentido. Diferentemente de uma equação matemática, onde efetivamente o todo é a soma das partes, toda e qualquer obra de arte, seja um livro, um filme, um anime ou o que for, não é a pura soma de suas partes, mas sim as correlações que as partes tem umas com as outras. Um dado personagem só faz sentido dentro do contexto de uma dada história. Uma dada história só pode ser contada com um dado personagem. Uma dada trilha sonora só brilhará de fato quando inserida numa cena dentro de uma história. E por ai vai. Não podemos ignorar a relação entre as partes e achar que basta fazer uma listagem do que o anime ou mangá apresentam. Este método que se propõe científico é completamente inadequado para se tentar avaliar (ou melhor, usemos a palavra correta, julgar) algo tão subjetivo quanto um desenho ou um quadrinho. Sobretudo quando o método pressupõe a neutralidade do sujeito, que se sente respaldado por todo um jargão técnico que, muitas vezes, se quer nota o quão acriticamente o emprega. “O personagem tem um desenvolvimento mediano”. Em primeiro lugar: qual é a sua definição de “desenvolvimento”? Em segundo lugar, quais seus parâmetros para definir se este desenvolvimento foi bom ou não? Em terceiro, estabelecidos os extremos, como se chega a este meio termo que é o termo “mediano”? Quarto, por que o personagem ser bem ou mal desenvolvido é relevante? Estas perguntas (e outras mais) são completamente ignoradas pela maioria, não somente dos autores destas críticas, como também pelos leitores. Mesmo por aqueles que contestam a crítica! Eu discordo, achei o personagem bem desenvolvido. E nisso eu incorro na exata mesma problemática, sem me dar ao trabalho de definir “desenvolvimento”, “bom” ou nem de explicar porque isso importa!

Ufa… Relendo o texto, acho que o tom talvez tenha ficado exaltado demais (rs). Mas é realmente porque esta é uma temática que me levanta muitas ressalvas. Desde o advento do positivismo, as ciências exatas ganharam enorme primazia sobre as demais. Obvio, as exatas tem a vantagem de produzirem algo concreto. A matemática, a física, a química… Que áreas do conhecimento poderiam ser mais úteis ao capitalismo? Se não eram as responsáveis diretas pela criação de novas mercadorias, os avanços nessas áreas certamente foram indispensáveis para a melhoria das máquinas, dos meios de transporte, mesmo do avanço de outras áreas caras ao capitalismo, como a economia. Um resultado menos escancarado, porém, foi como essa forma de fazer ciência foi incorporada por todos nós. Hoje, a objetividade é um princípio não apenas do físico que procura entender o movimento dos corpos. Nossas escolas dizem usar de métodos objetivos para julgar o progresso ou fracasso dos alunos. Os jornalistas dizem usar de métodos objetivos para narrar os “fatos” tal e qual eles ocorrem (e o favorecer a grupos de esquerda ou direita é pura coincidência, eles juram). Historiadores já acreditaram ser capazes de narrar os fatos tal como eles foram. E, claro, a crítica diz ser capaz de oferecer um método objetivo para julgar se uma dada obra de arte é um sucesso ou um fracasso. Raramente, porém, aqueles que seguem este tipo de princípio pensam de onde ele vem ou o que significa empregá-lo. Por que a crítica precisa ser objetiva? Por conta da ilusão de que a roupagem de objetividade tornará a opinião do crítico inatacável? “Estes são os fatos e contra fatos não há argumentos”, esta é a lógica? Porque se for, ela é falha já por princípio. Como disse logo no começo do post, é o fato da crítica se propor objetiva que permite que ela seja criticada. É o fato de haver um método que se permite a crítica a este método. Mas se não for por isso… Então por que?

Agora, eu não quero propor aqui que abdiquemos completamente de fazer críticas ou, ainda, de argumentar e embasar nossas opiniões (eu talvez não visse nenhum problema com o final dessa mania por notas e checklists, porém). O que eu quero colocar aqui é para não tratarmos a crítica de maneira acrítica. E não me refiro a discordar dos argumentos de quem critica. Me refiro a questionar o próprio método, a própria noção de “crítica”. Não aboli-la, que isso fique bem claro. Mas compreender que sua metodologia não caiu do céu. Que o que hoje chamamos de “crítica” não é algo que nos foi naturalmente dado, alguma espécie de instinto que todos temos (o que pode parecer as vezes, considerando o quanto naturalizamos certos aspectos de nosso cotidiano). Não, este modelo, esta forma da crítica tal e qual a conhecemos hoje, tem um contexto. Não se trata de algo natural: é uma construção social. Compreender isso e levar isso em consideração é a minha sugestão, além de ser o que sempre procuro fazer na hora de analisar o que for.

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