Kino no Tabi, episódio 1 – “Você já sentiu inveja dos pássaros?”


A Terra da Dor Aparente


Kino no Tabi é certamente desses animes. Do tipo que cada rewatch te faz perceber algo que você não havia percebido antes. Esta é já a minha quarta vez assistindo esse anime, e ainda há coisas que só agora eu começo a notar.

Quando primeiro assisti esse primeiro episódio, eu o terminei com a atenção muito mais voltada para os temas que ele trabalha em sua segunda metade. A efetiva história do país em questão, a Terra da Dor Aparente. Mas o vendo agora pela quarta, preciso dizer que ele se revela como um fantástico episódio de introdução aos seus dois personagens principais: Kino e Hermes.

Toda a primeira metade do episódio existe sobretudo para nos apresentar aos protagonistas. Quem são, quais suas personalidades, como é a interação de um com o outro, e por ai vai. E há de se admirar o tanto de informação que nos é passada sobre eles de um forma até que bastante sutil.

Este artigo foi dividido em três partes, as duas primeiras correspondendo, grosso modo, à primeira e à segunda metade do episódio, respectivamente. A terceira, porém, fica como um espaço para comentários que eu não tenha conseguido encaixar nas duas primeiras, incluindo ai momentos de foreshadow do que está por vir, e portanto pode conter spoilers de episódios futuro.

Mas feita essa introdução, partamos de uma vez ao episódio.

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Kino & Hermes


O episódio começa com um prólogo onde temos Kino e Hermes cruzando um deserto. E de cara há duas coisas nesses minutos inciais para as quais eu queria chamar a atenção.

A primeira delas é o fundo branco, usado aqui para representar o sol. É curioso, mas em algumas instâncias ao longo do anime o sol aparece como essa figura opressiva, que “pinta” o cenário de branco, paradoxalmente escurecendo o ambiente com a sua luz. Não é sempre, mas esta também não será a última vez.

E em segundo lugar, eu gosto bastante da forma como o anime transmite o fato de que a moto pode falar. Nós temos esse cenário completamente desolado, habitado apenas pela viajante e sua moto, sendo que a primeira está ofegando em frente a algum tipo de contêiner perdido no meio do deserto, e ai surge uma voz do absoluto nada. Se você não vai pra esse anime já sabendo que o Hermes pode falar, esse primeiro minuto pode até te confundir por alguns segundos, até você aceitar a única resposta possível: a moto fala. Então tá.

No mais, esse prólogo já nos apresenta alguns traços da personalidade dos dois personagens. Hermes nos aparece como, pra usar de um eufemismo, excessivamente cauteloso, dizendo que era impossível saírem em uma jornada e que deveriam voltar para a casa da “Mestra”. Já a Kino nos é apresentada como uma pessoa bastante decidida, mesmo ao ponto da teimosia – algo que Hermes não deixa de apontar.

O prólogo termina com a chegada da chuva, que inclusive transforma sutilmente o cenário. Aquele branco cegante se dissipa e podemos melhor ver o ambiente – incluindo ai o fato de que a Kino está numa pequena região verde em meio ao deserto. Como a personagem conclui: o mais essencial a um viajante é a sorte. E teremos ainda outras oportunidades de ver como a sorte tende a lhe favorecer.

Daqui nós passamos ao episódio de fato, que começa com Kino e Hermes em frente a um precipício. De novo, é um momento que expressa bem a personalidade de cada um. Hermes acredita que os dois foram enganados pela pessoa que lhes vendeu o mapa, mas Kino não tem tanta certeza. Talvez por ser uma máquina, Hermes tende a ser bem mais cínico que a sua parceira. Já a Kino… Bom, ela mesma diz, uma vez que chegam ao país do episódio: “gosto de ser otimista”. Não ingênua, que fique bem claro, mas otimista.

Um pouquinho antes disso, porém, há outra cena nesse começo do episódio que eu considero digna de nota. Ou melhor, nem tanto uma cena, mais uma fala. Após verem um cânion se abrir na sua frente, Hermes pondera que o mundo está em constante mudança, e portanto não é preciso sair de casa para vê-lo. Kino apenas responde “eu esperava que o propósito de uma motorad fosse correr, não?”. E acrescenta: “e o propósito de um viajante é viajar”.

Essa última frase é a que mais me chama a atenção, porque ela diz muito sobre como a Kino vê a si mesma. “Viajante”, pra ela, é mais do que apenas um hobby, um título ou uma profissão. É a sua identidade, parte integrante de quem ela é.

Com o perdão do desvio, mas esse é um lado da personagem que vemos com ainda mais força um pouco mais adiante nesse episódio, quando da segunda noite em que os dois estão no país da vez. Hermes aponta que sempre ficam apenas 3 dias em cada lugar, ao que Kino responde que se ficassem mais não poderiam ver tantos países. Ela mesma, porém, reconhece que isso deve ser uma mentira. Na verdade, ela teme se assentar – e nisso, deixar de ser uma viajante. É mesmo um pouquinho tautológico. Ela viaja porque é uma viajante.

No mais, essa primeira metade do episódio também estabelece alguns dos hábitos e costumes da personagem. O já mencionado fato dela ficar sempre três dias em cada país. O seu gosto por uma boa comida, um banho e uma cama macia (talvez um dos lados mais humanos da personagem, e que veremos ainda em diversas outras ocasiões). E o seu treino diário com sua arma, que mesmo sem nenhuma luta no episódio nos comunica ainda de forma bastante eficiente que ela não tem nada de indefesa.

É comum que em séries episódicas a ordem em que você vê cada episódio importe tem pouco. E enquanto isso não deixa de ser verdade para muitos dos episódios de Kino, acho que esse primeiro faz por merecer a sua posição. Ao começar com um episódio no qual os personagens passam a maior parte do tempo sozinhos, nós da audiência vamos nos aclimatando a eles.

Dito isso, eventualmente o episódio teria de seguir em frente, se quisesse nos apresentar também à fórmula da série. Assim, avancemos também com a análise.

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A Terra da Dor Aparente


Eu costumo dizer que Kino no Tabi é sobretudo uma antologia, muito mais um compilado de contos isolados do que realmente uma história coesa com começo, meio e final. E é através da Kino que nós, da audiência, experienciamos essas diferentes narrativas.

Esta é a “fórmula” à qual eu me referi. E após passarmos a maior parte do episódio acompanhando os dois protagonistas, somos afinal introduzidos a ela. Na manhã do terceiro dia naquele país, Kino finalmente encontra outras pessoas, vivendo isoladas umas das outras no subúrbio. A maioria corre só de ver a garota se aproximando, mas eventualmente ela encontra alguém disposto a explicar que país é aquele e o que exatamente aconteceu.

Não vejo porque resumir aqui a história que se segue – se você está lendo esta análise eu presumo já a conheça. Então tratemos logo de cara dos pontos que são abordados aqui.

A comunicação humana é imperfeita. É essa noção que serve de base para tudo o que se desenrola naquele país. E o exemplo que o homem dá à Kino é um que exprime isso muito bem: ainda que eu lhe diga que uma coisa é “bonita”, não há como transmitir o quão bonita eu sinto que ela é. Só que a questão que fica é: isso é um problema? É algo para o que deveríamos buscar uma solução?

As pessoas daquele país pensaram que sim. Que se pudéssemos verdadeiramente entender um ao outro, no mais profundo sentido possível da palavra “entender”, seriamos melhores e mais gentis uns com os outros. O nome do país é comumente traduzido como “Terra da Dor Aparente”, mas em japonês é “Hito no Itami ga Wakaru no Kuni“. Literalmente: “o país onde se entende a dor das pessoas”. Na teoria, uma boa ideia. Na prática, um completo desastre. Então, o que foi que deu errado?

Os japoneses costumam dizer que cada pessoa tem três rostos: aquele que você mostra para a sociedade, aquele que você mostra para seus familiares e mais íntimos, e aquele que você só mostra para si mesmo. Uma situação como a descrita no episódio, na qual todos conseguem entender os mais íntimos sentimentos daqueles no seu entorno, significa expor à toda a sociedade justamente o seu rosto mais íntimo.

A realização de que não somos sempre “nós mesmos”, a ideia de que precisamos colocar “máscaras sociais” adequadas para cada ocasião, pode por vezes ser recebida com certo cinismo. Como se fosse uma falha ou um defeito da nossa sociedade. O que esse episódio nos apresenta, porém, é que pode tratar-se justamente do contrário. Algum distanciamento entre o “eu” e o “outro” (e as máscaras são esse distanciamento) não só é desejável como é também crucial para o bom funcionamento da sociedade.

Às vezes, duas pessoas não gostam uma da outra. Numa situação normal, o decoro e a boa educação (além da lei, obviamente) obriga a boa convivência. Mas se esse desgosto fosse posto em evidência, longe de fazer os envolvidos apreciarem um ao outro, o resultado pode justamente ser uma contenda aberta. Que, diga-se, foi exatamente o que aconteceu naquele país.

E isso imaginando uma situação na qual duas pessoas já não se gostavam. A forma que o homem descreve à Kino é particularmente mais perniciosa. Ele diz, “mesmo a menor das coisas que você não gostava em alguém era transmitida, e só fazia ampliar o ódio nos dois lados”.

Verdadeiro mesmo para pessoas próximas, como descobrimos com a história do homem e sua esposa. Os dois se amavam, e seria de se esperar que duas pessoas nessa condição não teriam nada a esconder uma da outra. Mas a coisa não é assim tão simples. Pequenas coisas que talvez nem comentássemos eram agora transmitidas, e transmitidas sem nenhum filtro, sem palavras doces ou tons de voz para amenizar, levando apenas à frustração e ao ressentimento. No fim, um não podia mais tolerar a proximidade com o outro.

O ser humano é um animal social. Evoluímos para desejar o pertencimento a um grupo. Por isso, inclusive, buscamos a aprovação desse grupo. E por isso temos medo de ser rejeitados. Só que aqui o problema: não há duas pessoas iguais na face da terra. Entre o “eu” e o “outro” sempre haverá alguma diferença. Gostos que não batem. Ideias que não concordamos. E mesmo coisas um no outro que não gostamos. Normalmente isso não impede a convivência, porque deixamos tudo isso de lado. Mas quando tudo isso é posto em evidência, fica bem mais fácil de surgirem desentendimentos, porque tememos ter o nosso lugar no grupo ameaçado.

Algo que o homem diz vai bem nesse sentido. Ao final da sua história, Kino elogia a música que ele havia posto pra tocar. Ele diz que era sua favorita, e que sua esposa também gostava. Porém, ele se perguntava se isso era verdade. Desde que tomaram o soro, ele não colocara a música pra tocar, por medo justamente de descobrir que ela não pensava o mesmo que ele daquela música.

É do filósofo Arthur Schopenhauer a famosa parábola do dilema do ouriço. No frio, o ouriço deseja o calor dos seus, mas se se aproximarem demais irão espetar um ao outro. Assim funcionam as relações humanas: quanto mais próximos, mais machucamos um ao outro.

Sem conseguir viver com os espinhos, as pessoas da Terra da Dor Aparente se isolaram, escolhendo o frio da solidão. Mesmo anos depois do ocorrido ainda temem o contato com outras pessoas.

Após ouvir a história, Kino se dá por satisfeita e decide partir. Aqui, o anime nos informa de ainda outra característica da personagem. Ela não é nenhuma salvadora. Não está ali para resolver os problemas de ninguém, e prefere não se intrometer na cultura local. Seu papel é o de uma observadora de passagem. O porque disso… bom, eventualmente iremos descobrir.

Ao final, Kino e o homem trocam um último olhar, antes dela partir. A comunicação humana pode ser imperfeita, mas ela é funcional. E no fim do dia, às vezes nem importa se a outra pessoa entendeu mesmo ou não. Nem tudo precisa ser comunicado com a mais perfeita exatidão.

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E Agora: Todo o Resto


Como eu disse na introdução, essa área fica para todos os pontos que não consegui encaixar no texto acima, sobretudo por serem pesados em spoilers. Pensem bem antes de ler!

  • Quando a Kino pergunta ao Hermes se ele já sentiu inveja dos pássaros, ele responde que cada um tem o seu lugar no mundo. É uma colocação um tanto quanto irônica, quando você conhece o passado da Kino.

  • Que a Kino veja a si mesma como uma viajante, que isso seja parte da identidade dela, muito se deve ao fato dela ter deixado a sua terra natal e as circunstâncias em que o fez.

  • O episódio tem uma quantia absurda de foreshadow, uns mais sutis que outros. Alguns deles:

    • A fala da Kino “dizem que quando as pessoas veem um pássaro, elas sentem vontade de sair em uma viagem”, com um vislumbre rápido do Kino original.

    • Na conversa da segunda noite, quando Hermes diz que só havia um país onde a Kino quis ficar mais de três dias.

    • Hermes pergunta à Kino se ela terminou de arrumar suas armas, mas não consegue lembrar de imediato o nome da segunda. Talvez referência ao fato de que a Kino a havia obtido mais recentemente

  • A título de curiosidade, esse episódio adapta o prólogo do volume 2 e o segundo capítulo do volume 1 da light novel original. Com várias liberdades, diga-se de passagem.

  • O episódio termina com a frase “o mundo não é bonito, por isso ele o é”. Há várias formas de se interpretar isso, mas não estou confiante em nenhuma delas pra colocar aqui.

Um comentário sobre “Kino no Tabi, episódio 1 – “Você já sentiu inveja dos pássaros?”

  1. OTIMA ANALISE, sobre essa ultima frase “o mundo não é bonito, por isso ele o é” como voce disse varias maneiras poder ser intepretadas, e algumas delas até mesmo dentro da obra. varias culturas para o bem quanto para o mal, mas o que é o mal entre essas culturas? o que é o bem?… o “não é bonito” talvez seja uma questão do ponto de vista que quem vivencia.

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