É só um desenho?

Kino no Tabi // Ensaio 30/10/2015 // 1
O quanto uma obra pode nos influenciar? A resposta: mais do que imaginamos.

Antes de dar um início propriamente dito a este texto, eu quero contar a vocês duas pequenas e rápidas anedotas envolvendo um mangá que foi bastante popular no Japão ao em finais da década de 1960 e começo dos anos 1970: Ashita no Joe. Agora, para quem não conhece, o título (que pode ser traduzido como “Joe do Amanhã”) narra a história de Joe Yabuki, um jovem que, por seus motivos, se vê entrando no mundo do boxe profissional. A primeira anedota que eu conto aconteceu em março de 1970, após a morte de um personagem no mangá (que eu não digo qual por motivos de spoiler). Após sua morte, um funeral organizado por fãs foi feito, reunindo mais de 700 pessoas para homenagear o “falecido”, incluindo ai um monge budista que supervisionou os ritos. Já a segunda anedota é um pouco menos “tocante” e aconteceu alguns anos antes, em 1968 (ano de lançamento do mangá, inclusive): após sequestrar um avião que ia para a Coréia do Norte, o grupo terrorista responsável pelo incidente, chamado “Sekigun” (Arma Vermelha), fez um pronunciamento à imprensa no qual eles diziam “nós somos os Joe do Amanhã” [1].

“Ta, e daí?” eu ouço alguns de vocês comentarem. Bem… como colocar isso de uma forma que não soe sensacionalista? Vamos lá: nos últimos anos, tem despontado um discurso de que livros, desenhos animados, filmes, etc., são “só [alguma coisa]”. “É só um livro”, “é só um filme”, “é só um desenho”, e por ai vai. E a meu ver, esse discurso vem sobretudo por conta da polêmica em volta dos vídeo-games. Isso porque esse discurso que eu menciono tenta justamente argumentar contra alegações de que “vídeo-games deixam as pessoas violentas” ou coisa do tipo. Ou mesmo argumentar contra alegações que visam proibir a exibição de certos comportamentos: “se mostrar pessoas fumando, o espectador vai virar fumante”, “se mostrar um casal gay o espectador vai virar gay”, e por ai vai. Contra esse tipo de argumentação, gamers, geeks, mesmo otakus dirão “gente, menos: é só entretenimento, não é real e em nada me influencia”. O que, ao meu ver, não é exatamente verdade. Agora, antes de mais nada, eu quero deixar claro que eu não pretendo de forma nenhuma dizer que jogos deixam as pessoas violentas ou que uma cena de beijo entre homossexuais na novela tornará as pessoas gays, ou qualquer coisa do tipo. O que eu quero tentar mostrar, porém, é que dizer “é só um desenho” e agir como se estas obras não pudessem ter absolutamente nenhum impacto no mundo real é… problemático, isso para dizer o mínimo.

Ashita no Joe // Ensaio 30/10/2015 // 2
Joe Yabuki, protagonista de Ashita no Joe. Em 1970 o mangá ganha uma adaptação para a TV, contando com 79 episódios num total.

Mas vamos com calma. Deixem eu fazer uma pergunta: você, leitor, já se emocionou com uma obra de ficção? Seja um filme, um anime, um mangá, mesmo uma musica, já chegou perto de chorar (ou efetivamente chorou) com alguma obra? Ou, se não se emocionou no sentido de sair vertendo lágrimas em prantos, já teve aqueles dias em que tudo parecia dar errado, mas um novo episódio de algum anime ou série ajudou você a esquecer dos problemas e se acalmar um pouco? E aqueles momentos em que estamos deprimidos e justamente o que precisamos é ouvir uma boa musica, já teve momentos assim? E se eu perguntasse se você já aprendeu algo com animes, seja uma curiosidade qualquer, como as cores do arco-íris ou a ordem dos signos do zodíaco, seja algum valor moral ou questionamento filosófico? Eu vou chutar aqui e dizer que a maioria de vocês deve ter respondido “sim” para ao menos uma ou duas dessas minhas perguntas. E nesse momento já deve ter entendido mais ou menos onde eu que chegar com isso: arte, seja ela a modalidade que for, desde uma pintura, escultura, arquitetura, até filmes, quadrinhos jogos, nos afetam. Alegria, tristeza, otimismo, raiva, paixão, repulsa, toda forma de arte é capaz de causar no seu espectador toda uma série de sentimentos. Em fato, praticamente desde o seu surgimento esse foi exatamente o seu objetivo.

Agora, é preciso dizer que é complicado falar em “arte” antes da modernidade. Na verdade, é mesmo complicado falar em “arte” fora da Europa mesmo por um tempo fora da modernidade. A existência ou não de “arte”, por exemplo, na África pré-colonial é um debate bastante relevante para os pesquisadores da chamada “arte africana”. E esse debate existe por conta da nossa noção de arte. Nós, de mentalidade européia ocidental, vemos a arte, atualmente, como o “supérfluo”. Por mais belo que seja, um quadro não tem função: ele existe apenas para si mesmo e quando muito vai servir para tapar algum buraco na parede da sua casa. De certa forma, o mesmo pode ser dito sobre desenhos, filmes, quadrinhos, etc. A existência ou não dessas obras não vai impactar na sua vida, ao menos não da mesma forma que a existência ou não de comida, água e um abrigo. Arte não é necessária à sobrevivência, é como vemos hoje. Mas isso não é exatamente verdade para outros povos em outras época e lugares. Pinturas corporais, máscaras rituais, estatuetas de deuses, tudo isso era visto não como algo a ser apenas observado por conta de sua beleza (ou falta de, como algumas obras de arte atuais), mas sim como peças fundamentais na manutenção do próprio universo. Eram partes da identidade de grupos, ou símbolos que indicavam a posição social, profissão ou família de uma pessoa. E também eram partes de intrincados rituais que visavam manter a ordem do cosmos, aprazando os deuses e trazendo à Terra suas benesses. Mesmo a arte medieval européia era assim: as igrejas medievais não eram ricamente decoradas apenas porque as pessoas achavam bonito, mas sim porque acreditavam que isso era necessário para que a igreja funcionasse adequadamente.

K-On // Ensaio 30/10/2015 // 3
Você já se emocionou com alguma obra de ficção?

Mas reparem justamente nisso: em sua origem, ainda como objeto ritual ou identitário, a arte era vista não apenas como algo mais do que puro objeto de embelezamento e distração, mas em fato como algo de suma necessidade para a vida humana, bem como algo que produzia um efeito na realidade concreta. E, é claro, algo que produzia um efeito nas próprias pessoas, que frente a frente com o sagrado, seja este uma dança ritual de mascarados, seja a imponência de uma catedral gótica ricamente ornamentada, despertava em si uma vasta série de sentimentos e sensações, tais como a adoração, a felicidade, a exaltação, o medo, etc. A arte, hoje, ainda responde a estes princípios, de despertar algo naquele que a observa. E eu acredito que ninguém aqui irá discordar disto, de que essas obras nos despertam as emoções e que, portanto, nos afetam em alguma medida. Se alguém algum dia já chorou a morte de um personagem ou comemorou a vitória de outro, dizer isso deveria ser dizer o óbvio. Mas uma obra ser capaz de nos emocionar, enfurecer ou acalmar naquele momento em específico do observá-la (quando estou lendo o quadrinho, ou assistindo o filme, por exemplo) não significa que a obra influencie a pessoa para além daquele momento, eu certamente reconheço isso. Então vamos sair um pouco dessa influência momentânea nas emoções e comecemos a falar de ações.

Em 1774, Johann Wolfgang Goether, hoje talvez mais conhecido pelo sua famosa peça Fausto, publicou o livro As Tristezas do Jovem Werther. Ao final do livro, o protagonista, Werther, rejeitado pela mulher que amava, decide encerrar a sua vida dando um tiro em si mesmo. O motivo pelo qual eu estou dando spoilers de um livro de 1774 é o que aconteceu depois da publicação deste livro: por toda a Europa, jovens adultos que eram rejeitados pelas mulheres que amavam começaram a cometer suicídio da exata mesma forma que o personagem Werther, inclusive vestindo roupas idênticas ou semelhantes àquelas que o livro descrever que o Werther usava ao se matar. Essa espécie de “onde de suicídios” foi encarada com tanta seriedade que diversas regiões da Europa simplesmente baniram o livro de seu território, em uma tentativa de acabar com os suicídios. Na verdade, o caso foi tão marcante que em 1974 o pesquisador David P. Philips cunhou o termo “Efeito Wether” para descrever casos de aumento de suicídio após a exposição de um suicídio prévio. E não pensem que são poucos casos do tipo, oh não. Em seu livro The Copycat Effect: How The Media And Popular Culture Trigger The Mayhem In Tomorrow’s HeadlinesLoren Coleman menciona diversos estudos que, combinados, mostram que na realidade o normal é você ter um aumento do número de suicídios em uma região após o jornal local noticiar um suicídio. Tanto é, que atualmente sempre que um jornal americano noticia um caso de suicídio é colocado, junto da notícia, um número de telefone da linha especialmente criada para ajudar suicidas em potencial a permanecerem vivos. Ah, mas não se preocupe, suicídios não são a única coisa imitada. Na verdade, em seu livro Coleman dá bastante atenção aos casos de Efeito Copycat.

Paranoia Agent // Ensaio 30/10/2015 // 4
Ainda que não trate diretamente sobre o suicídio, Mousou Dairinin – Paranoia Agent, anime de 2004, bem apresenta as consequências que a cobertura midiática excessiva de um assunto podem ter.

Agora, eu não quero me estender muito no assunto, sobretudo porque eu já o fiz no meu texto Ghost In The Shell S.A.C. – O Individual e o Coletivo: do Efeito Copycat ao Stand Alone Complex, mas em linhas gerais o que o Efeito Copycat prevê é que tal como suicídios, a cobertura da mídia de um determinado crime pode fazer surgir imitadores daquele criminoso. Os casos mais famosos do tipo envolvem os crimes cometidos por assassinos seriais perigosos, a exemplo do assassino apelidado como “Jack, O Estripador”, que teve diversos imitadores, mas não existe razão para imaginar que crimes menores não possam causar o mesmo efeito. Em fato, de cabeça eu consigo pensar em um exemplo bem concreto e bem brasileiros: assalto a caixas eletrônicos usando explosivos. Agora, eu não tenho ideia de quem ou onde começou essa forma de roubo, que basicamente consiste em colocar um explosivo num caixa eletrônico e, depois que ele explodir, recolher o dinheiro que se espalhar, mas em algum tempo casos do tipo foram se tornando mais e mais comuns, ao ponto que tiveram de desenvolver tecnologias especiais para lidar com isso (a exemplo de caixas eletrônicos que mancham as notas de tinta se explodidos, inutilizando e marcando o dinheiro). Podemos dizer que a mídia não teve nenhum impacto nesse caso? Será que as constantes transmissões de crimes do tipo não “deram ideia” para outros criminosos? Pode ser difícil dizer com certeza, mas não me parece fora do rol das possibilidades.

“Mas o que isso tem a ver com desenhos?!” eu ouço vocês perguntarem. Bom, talvez não com animes exatamente, mas nós temos uma vasta série de crimes bastante reais (muitos dos quais extremamente brutais) que foram inspirados em filmes. E quando eu digo que tem muitos, é porque são muitos mesmo, incluindo ai crimes de sequestro, tortura, assassinato, chacinas, entre outros. Eu cheguei a citar, naquele meu já mencionado texto sobre Ghost In The Shell Stand Alone Complex, alguns crimes que foram inspirados pela trilogia de filmes Matrix, mas uma rápida pesquisa na internet facilmente trará a qualquer interessado no assunto diversas listas de crimes reais inspirados em filmes. E eu sei o que você, leitor, vai dizer: que estes crimes foram perpetrados por gente claramente perturbada ou mentalmente instável, e não por pessoas sãs e plenamente conscientes de suas ações. Ao que eu responderia: você está certo. Suicídios, assassinatos, chacinas, tudo isso é, via de regra, praticado por pessoas cuja sanidade mental está certamente fragilizada, tornando-as bem mais influenciáveis do que deveriam ser. Inclusive, este é o grande argumento contra discursos como o de que vídeo-games causam violência, apontando que os poucos casos em que isso de fato ocorre se deve a algum distúrbio da própria pessoa que a tornou incapaz de distinguir firmemente entre realidade e ficção. Mas notem bem o que eu acabei de dizer: pessoas assim são mais influenciáveis do que deveriam ser. Isso porque, bem… Todo mundo é influenciável em algum nível.

Ghost in the Shell // Ensaio 30/10/2015 // 5
Ghost In The Shell: Stand Alone Complex, anime de 2002, lida com um tipo bastante peculiar de Efeito Copycat.

Nós gostamos de pensar em nós mesmos como plenamente autônomos, donos de nossos pensamentos, ações, crenças… Agentes de nossa própria formação enquanto pessoa. Mas… Somos? Não que a resposta a isso seja um categórico e completo “não”, mas talvez precisemos aceitar ai um “não completamente”. Cada um de nós está imerso em uma cultura, e dela tira boa parte dos seus referenciais. O que é certo, o que é errado, como se portar à mesa, quais valores são socialmente aprovados, quais são desaprovados, todos nós recebemos constantes “mensagens” do nosso entorno que nos dizem como devemos nos comportar. Essas mensagens podem vir de nossos familiares, sobretudo quando somos crianças, que verbalmente nos dizem como agir ou não agir. Podem vir das demais pessoas ao nosso redor, às quais o comportamento nós frequentemente imitamos. Ou pode, é claro, vir das histórias que ouvimos. Não a toa, a vasta maioria das histórias infantis possui algum caráter pedagógico, dizendo às crianças o que é certo e o que é errado. Mas antes que alguém entenda que eu quero insinuar que crianças que veem obras violentas ficarão violentas, deixe eu deixar isso bem claro: todos nós somos constantemente bombardeados pelas mais variadas formas de influência. Uma criança ou adolescente jogar um jogo que incentiva a violência (e sejamos honestos: são poucos. A vasta maioria procura dar um motivo válido dentro da trama de porque naquela circunstância em particular a violência é algo aceitável) ao mesmo tempo em que é exposta a outras mídias condenando a violência e à família falando como é errado sair atirando por ai provavelmente vai ficar bem. O problema é quando todo o ambiente em que aquele jovem está incentiva e premia a violência, ai a coisa pode ficar um pouco mais complicada, mas ai eu já estou digredindo.

Voltando ao ponto: pessoas são influenciáveis. Talvez não ao ponto de cegamente fazerem o que qualquer quadrinho ou desenho diga, mas certamente também não podemos cair no extremo oposto de achar que as pessoas não podem ser influenciadas. E na verdade essa ideia da pessoa enquanto não influenciável é mesmo bem fácil de derrubar. Para isso, eu pergunto ao leitor: você já adotou algum comportamento que viu em algum anime, filme, seriado ou o que for? Desde talvez a forma de falar, o jeito de correr, ou mesmo a forma como você ajeita seus óculos (se usar, é óbvio), eu vou chutar que pelo menos um pequeno comportamento de algum personagem icônico você já adotou, nem que por um pequeno período de tempo. E tudo bem, talvez você realmente nunca tenha feito nada do tipo, mas o que dizer então de seus valores? Acha que alguma obra de ficção já interferiu neles, seja fortalecendo em você certos valores ou o fazendo questionar valores que você já possuía? Ou então, algum anime já fez você pensar ou repensar alguma questão moral, filosófica, existencial ou o que for? … Não? Nada? Nem uma única vez? … Ok, última tentativa: após ver uma adaptação, você já foi atrás da obra original? Já leu o livro porque gostou do filme? Foi atrás do mangá porque gostou do anime? Procurou o quadrinho após ver a série? É claro, algo assim é bem diferente de agir como um personagem ou aceitar os valores que uma história tenta passar, mas continua sendo uma atitude tomada por influência de uma obra.

Dragon Ball One Piece Naruto // Ensaio 30/10/2015 // 6
Certas obras existem justamente para reforçar certos valores.

Antes de finalizar o texto, é importante dar algumas palavras sobre um último ponto: o autor. Isso porque… Bem, já repararam no subtítulo deste blog? “Nenhuma história é ingênua”, foi o que escrevi. O que eu quero dizer com isso é que toda história traz, consigo, um propósito. Não no sentido de alguma grande conspiração para lhe fazer acreditar em ideologia X ou Y, mas no sentido de que toda história expressa uma visão de mundo, normalmente a visão de mundo de seu autor. Muitas vezes, essa visão de mundo condiz com a sociedade em que o autor está, e neste caso a obra pode reforçar, pelo espelhamento, certos comportamentos e valores. Em outros casos, porém, a obra pode ser uma crítica à sua sociedade, uma tentativa do autor de intervir e dizer “isto está errado”. Em qualquer caso que for, isso ainda irá implicar que toda história transmite uma certa ideologia, quer seu próprio autor esteja ciente disso ou não. E sinceramente: tudo bem. Por algum motivo dizer que uma dada obra compactua ou propaga uma dada ideologia se tornou algo negativo, problemático, ou algo do tipo. Não! Um filme, um livro, um quadrinho, um anime, todas são formas de um artista se expressar, dizer o que pensa e o que gostaria de passar às outras pessoas. É lógico que haverá algo de subjetivo ai. E é lógico que haverá algo de ideológico, e não tem nada de errado com isso. Pelo contrário: é o fato de que pode haver uma ideologia por trás que nos permite, como espectadores, observarmos diferentes formas de encarar o mundo.

É claro, algumas obras certamente irão pisar em alguns calos aqui e ali. Obras como Hourou Musuko, que tem a intenção de tratar da transexualidade como algo normal, ou Chikyuu Shoujo Arjuna, que tem em si uma forte mensagem ambientalista, possivelmente serão desconfortáveis para algumas pessoas, isso para dizer o mínimo. Mas é justamente por serem desconfortáveis e por trazerem em si mensagens tão claras e pesadas que elas podem levar o espectador a refletir (bom, supondo que ele não tenha desistido do anime após os primeiros episódios, claro). E aqui está: pouco importa qual será a conclusão do espectador, concorde ele ou não com o anime, o simples fato da obra o fazer se questionar já mostra o tipo de força que as obras de ficção podem ter. Ao longo de todo esse texto eu mencionei como o espectador é, muitas vezes, um ser passivo frente à ficção, sendo emocionado por ela ou influenciado por ela, mas nessa parte podemos ver como uma obra pode dar certa agência ao espectador. Agência essa de se questionar, de repensar as próprias convicções e, ou fortalecê-las, ou abandoná-las. É claro, não raras vezes o espectador precisa estar aberto a esse tipo de experiência, do contrário possivelmente só irá descartar a obra como alguma espécie de “propaganda” e ignorar completamente suas mensagens, mas aqueles que se deixarem questionar, que se permitirem ter um diálogo com a obra, talvez saiam da experiência com novas visões sobre os mais variados assuntos.

Arjuna // Ensaio 30/10/2015 // 7
Excelente exemplo de um anime com claro engajamento político, Chikyuu Shoujo Arjuna, de 2001, traz consigo diversas mensagens de cunho ecológico.

É um fenômeno curioso. Uma obra de arte pode nos emocionar até mesmo além do que esperamos. Pode nos fazer sorrir quando tristes. Pode nos fazer chorar de alegria ou de tristeza. Pode nos enfurecer, e pode nos acalmar. Não apenas isso: a arte é também uma forma pela qual a nossa cultura se expressa. Cada obra carrega em si crenças, valores, ideais e ideologias, que podem ou não compactuar os valores e ideias da sociedade na qual foi produzida. Um quadrinho, filme ou série pode nos confirmar que um dado comportamento é positivo, bem como pode nos fazer questionar se um outro realmente o é. Não é a toa que grupos feministas, negros ou homossexuais peçam por uma maior representatividade em filmes, jogos e séries: exposição importa. Sermos expostos continuamente a um dado comportamento, a uma dada forma de viver, a uma dada forma de pensar… É ingenuo pensar que isso em nada nos afeta, que somos uma espécie de fortaleza protegida contra qualquer influência externa. Não somos. E é mesmo perigoso achar que somos. Se não estivermos abertos à ideia de que a ficção pode nos influenciar, nem iremos perceber quando ela efetivamente o estiver. Por séculos práticas como o racismo, o machismo, a homofobia e a xenofobia foram reforçados em obras de ficção, às quais muitas pessoas foram expostas desde os primeiros anos de vida até o seu último suspiro.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão sofreu com um problema de falta de papel, o que significava pouco material para produzir mangás. Como consequência, apenas obras que exaltavam e favoreciam os feitos militares do Japão em guerra eram autorizadas a serem produzidas. E o Japão não eram nem de longe o único país a usar do entretenimento como forma de propaganda em favor da guerra: é bem famosa uma produção de Walt Disney no qual o Pato Donald sonha que trabalha em uma fábrica de bombas da Alemanha nazista, apenas para acordar e agradecer por viver nos Estados Unidos. E não termina por ai: após o final da guerra, que incluiu a rendição incondicional do Japão, o país ficou proibido de ter qualquer mangá que exaltasse os japoneses. Mesmo mangás de esportes ficaram proibidos por um tempo. Será que estes países tomariam medidas como estas se tudo isso fosse “só um quadrinho” ou “só um desenho”? É provável que não.

Hourou Musuko // Ensaio 30/10/2015 // 8
Somos continuamente influenciados por aquilo à que estamos expostos. Não é a toa que grupos como mulheres, negros, transexuais e homossexuais pedem por melhores representações nas mais variadas mídias.

O ponto é: histórias tem mais poder do que as pessoas tendem a creditar-lhes. Reforçam comportamentos. Incentivam comportamentos. Influenciam em nossas visões de mundo. E se não aceitarmos essa possibilidade, se não tivermos ciência de que somos todos ao menos um pouquinho influenciáveis, podemos acabar nem percebendo o quanto já estamos sendo. Ou, ainda pior, podemos nos ver à mercê daqueles que entendem muito bem o real potencial que esse tipo de obra pode ter. Pois existe um bom motivo para a Inquisição ter queimado diversos livros, e é o mesmo motivo que levou à censura prévia de praticamente tudo durante a nossa ditadura militar, ou à padronização de certos cânones no cinema soviético da comunista URSS. Arte é uma forma de transmissão de informação como qualquer outra. E nós devemos ser sempre críticos com o tipo de informação que estamos recebendo. E sim, eu sei que as vezes tudo o que queremos é sentar e relaxar enquanto assistimos a mais um episódio de algum anime, ao invés de ficar pensando profundamente nas mensagens que ele tenta nos passar. Mas a isso eu digo: você não precisa bancar o crítico 24 horas por dia. Tente apenas não diminuir ou ignorar a influência e a agência que estas obras podem ter na realidade. Não é só um livro. Não é só um filme. Não é só um quadrinho. E, definitivamente, não é só um desenho.

Notas:

1 – Kinsella, Sharon. Adult Manga: Culture & Power in Contemporary Japanese Society, pág. 32.

Imagens:

1 – Kino no Tabi, episódio 9

2 – Ashita no Joe, episódio 1.

3 – K-ON!!, episódio 20.

4 – Mousou Dairinin – Paranoia Agent, episódio 1.

5 – Ghost In The Shell: Stand Alone Complex, episódio 5.

6 – Capa dos volumes 1 de Dragon Ball (1984), One Piece (1997) e Naruto (1999).

7 – Chikyuu Shoujo Arjuna, episódio 1.

8 – Hourou Musuko, episódio 11.

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