
Há, fiz você clicar!
Navegando pelo Facebook na última quinta (29/07), eis que me aparece o link para uma notícia cujo título era no mínimo preocupante:
A matéria, publicada no popular portal “Intoxicação Animentar” (i.e. “Intoxi Anime“), é assinada por Marcelo Almeida, e fala de uma entrevista com Takeshi Natsuno, atual presidente da Kadokawa – uma das maiores editoras do Japão.
Segundo Natsuno, haveria a necessidade de se criar um “novo padrão” quanto ao que se pode ou não ser mostrado nos mangás, a fim de essas obras sejam aprovadas nos critérios do Google ou da Apple. Adicionando ainda que:
“A empresa para a qual trabalho está cheia de pessoas que estão do lado da liberdade, mas acho que devemos dar um passo atrás.”
Como assim “dar um passo atrás” na liberdade?! O que isso realmente significa para o futuro dos mangás, light novels, videogames e por ai vai? Estaria afinal o mercado otaku se dobrando em definitivo ao “politicamente correto”?
Bom… menos. Bem, bem menos.
De cara essa matéria me fez soar todos os alarmes possíveis. Sempre que algo soa ultrajante demais para ser verdade, há no mínimo a chance de que de fato não seja. Então, eu resolvi ir a fundo nessa história.
E o que descobri é no mínimo curioso.
Ta… Mas Qual é a Fonte?
Agora, seria muito fácil para mim apenas passar a matéria original que, em última instância, resultou nesta do portal Intoxi Anime. Inclusive, tornaria este artigo bem mais curto e amigável às sensibilidades modernas. Como é de praxe por aqui, porém, eu quero dar um passo além.
Quero explicar não apenas o que há de errado com essa matéria, mas também como eu vim a descobrir tudo isso. Para que você, leitor, possa no futuro ficar mais atento a como certos grupos manufaturam ultraje.
Sendo assim, vamos começar com o básico: as fontes. De onde, exatamente, saiu essa notícia? Sim, a matéria fala de “uma entrevista” feita no canal de streaming Abema TV, mas isso não é lá muito específico, não é?
Crédito onde é devido, ao menos ao final a matéria nos dá suas reais fontes. Parabéns: você fez o absoluto mínimo. Mas fica ainda a pergunta: são boas fontes? Bom… vamos por partes.
A segunda delas é uma matéria do site Anime News Network:
O site em si é bastante confiável, sendo um dos principais portais do meio lá fora. Contudo, a matéria linkada não fala nada sobre essa tal entrevista. Saindo em março deste ano, ela apenas noticia a subida de Takeshi Natsuno à presidência da Kadokawa.
A matéria talvez sirva para provar que Takeshi Natsuno é de fato uma pessoa que existe e que ele é também de fato o atual presidente da Kadokawa. Para além disso, porém, essa notícia não tem qualquer valor como fonte da matéria no Intoxi Anime.
A primeira fonte, porém, é muito mais interessante:
El presidente Kadokawa habla sobre la futura censura en la industria otaku
Antes de mais nada, há de se apreciar que o título dessa matéria consiga ser ainda mais sensacionalista do que aquele da matéria no Intoxi Anime. Mas isso de lado, que site é esse, afinal?
Vou ser bem franco e dizer que nunca ouvi falar nesse portal Kudasai. E uma pista do motivo talvez esteja logo no seu rodapé, onde podemos ler “© 2018 – 2020 SomosKudasai.com – Todos los derechos reservados.”
É um site bem novo, estando aqui em seu terceiro ano de atividade, e num geral parece ser um portal voltado para notícias sobre esse meio da cultura pop japonesa. Não tenho ideia do quão confiável ele é, ainda que o título dessa notícia em específico não me passe uma boa primeira impressão…
Em todo caso, lendo a matéria fica bem evidente que a notícia do Intoxi Anime é tão somente uma tradução para o português desta notícia em espanhol. O que… bom, tudo bem. O próprio Kudasai fala, também no rodapé, que permite a cópia de seu conteúdo, desde que creditado. Nada de errado aqui.
O problema, contudo, é que o próprio Kudasai não é a fonte primária. Então de onde vem essa notícia?!
A fonte do portal Kudasai é um tweet, feito pelo usuário/a @seri3ma. Pessoa cujo twitter parece dedicado a compartilhar hentai e conteúdo “anti-SJW”.
Pra ser franco, não me parece lá a melhor das fontes, mas ei, o que eu entendo de jornalismo, não é?
Quanto à fonte deste tweet, esta é ainda uma outra thread no Twitter, desta vez pelo usuário/a @nmisaki. Que, em sua bio, se declara “um crítico de mangás e um pesquisador de doujinshi“.
A thread em si está em japonês, e eu queria aproveitar o momento para apontar o quão longe nós já fomos nessa jornada. Passamos já por quatro línguas e algo entre dois ou três continentes e ainda não chegamos em uma só fonte primária!
É um site brasileiro que cita um site hispânico, que cita a um tweet em inglês, que traduziu (?) uma thread em japonês. E ninguém tem qualquer relação direta com essa tal de “Abema TV”!
Onde Tudo Começou
Felizmente – e finalmente – é aqui que a nossa busca acaba! Pois quem quer que seja @nmisaki, essa pessoa adicionou à sua thread o link para a notícia original. Uma matéria da própria Abema TV:
「大人に囲まれ、やらなきゃいけない空気に」「現場から走って逃げてしまった」ネットに“写真”が”半永久”に残る時代、撮影を後悔するグラビアアイドルを生まないためには
Oh, desculpe, você não entende japonês? Bom, eu muito menos, então vamos ver o que o bom Google Tradutor pode fazer por nós:
“No ar que tens que fazer, rodeado de adultos” “Fugi de cena” Numa época em que as “fotografias” ficam “semipermanentes” na net, para não produzir ídolos da gravura que se arrependem de disparar
Ok, não foi a mais compreensível das traduções. Mas traduzindo toda a matéria, da pra ao menos ter uma ideia do contexto que deu origem a todo esse pânico de proporções internacionais.
A matéria começa falando sobre como gravuras de idols de maiô são comuns em muitas revistas, mas que uma em particular parecia ter recebido críticas do público japonês no mês anterior.
Dai pra frente a matéria relata a opinião de diversas pessoas envolvidas no meio, entre idols atuantes, ex-idols, e mais. Todas falando se essas gravuras são ou não apropriadas.
O leitor, porém, talvez se pergunte: mas onde fica, então, Takeshi Natsuno? Bom, não se preocupe, porque já estava chegando lá!
A verdade é que Natsuno só aparece no penúltimo parágrafo da matéria. E sua declaração, aqui, soa bem menos incendiária do que quando começamos toda essa jornada:
“Há pessoas que têm uma figura linda como um milagre, há pessoas que pensam que vale a pena e também é verdade que o dinheiro está circulando. Isso é injusto. Não acho isso engraçado e não acho que haja um debate sobre se a rotogravura é boa ou ruim. Por outro lado, o Japão está cheio de desenhos animados mais radicais do que a rotogravura de maiô. Acho que temos que recriar os padrões que são adequados para esta era on-line, incluindo essas coisas. “
Tenha em mente que toda a conversa até esse ponto falava sobre como idols muito jovens podem vir a se arrepender de aceitarem fazer essas gravuras de maiô quando percebem, depois, que estas estarão na internet para sempre. O que dá todo um novo significado à fala de Natsuno sobre como “temos que recriar os padrões que são adequados para esta era on-line”
Não vou negar que o “incluindo essas coisas” bem poderia incluir os “desenhos animados mais radicais do que a rotogravura de maiô”. E vou também admitir que estou partindo da matéria escrita, sem ter visto o vídeo original que deu origem a ela (tanto por estar bloqueado para nós como pelo fato de não entender japonês).
Mesmo assim, quando chegamos à matéria original podemos perceber nela todo um contexto que foi simplesmente apagado de todas as suas reproduções futuras. Um verdadeiro jogo de telefone sem fio internacional!
Aliás, notaram nessa fala do Natsuno a completa ausência de qualquer menção ao Google ou à Apple? Pois é! Eu não tenho ideia de onde essa parte da história veio, e basta pensar por alguns segundos para perceber que ela nem fazia sentido em primeiro lugar! [1]
Não, não vão censurar seus animes. Não, não vão censurar seus mangás. No pior dos casos talvez parem de botar garotas menores de idade pra posar de maiô (oh a tragédia! /s). Está tudo bem.
Mas isso não rende cliques, não é?
Manufaturando Ultrage
Já dizia o velho ditado: nunca atribua malícia ao que pode ser explicado como mera estupidez.
Eu vou ser generoso aqui e dizer que tudo isso não passou de, como eu disse mais cedo, um longo jogo de telefone sem fio. Um que começou lá no Japão e percorreu o mundo para chegar até nós. Contudo, ainda cabem duas ressalvas aqui.
Em primeiro lugar, eu não sou ninguém especial. Não sou dotado de talentos especiais nem de contatos especiais. Eu nem sei ler japonês!
Tudo o que eu descobri para este artigo eu o fiz usando de ferramentas que qualquer um tem acesso. Seguindo as fontes – generosamente linkadas por todos os envolvidos nesse desastre. E um pouquinho do bom e velho Google tradutor.
O que só torna menos perdoável a matéria do Intoxi Anime! Porque era fácil derrubar essa bobagem. E, ainda assim, a matéria foi ao ar. Em flagrante mostra de, no mínimo, incompetência jornalística.
Mas mais do que isso, há uma clara dimensão política em matérias como essa.
Lembram o que eu disse sobre manufaturar ultraje? Notícias do tipo alimentam esse bicho papão do “politicamente correto”, que está vindo para acabar com tudo o que lhe é mais precioso.
E basta uma lida nos comentários da matéria no Intoxi Anime para ver como essa fantasia é eficaz em deixar as pessoas irritadas. Mas pois bem: a todos que se sentem assim, gostaria de tranquilizá-los. E também de lembrá-los para que sempre duvidem do que veem na internet.
Especialmente em sites menos reputáveis.
Em Resumo
Em uma matéria sobre gravuras de idols de maiô, onde se discutia o arrependimento de algumas idols quanto ao fato dessas imagens ficarem para sempre expostas na internet, Takeshi Natsuno, atual presidente da Kadokawa, disse que “temos que recriar os padrões que são adequados para esta era on-line, incluindo essas coisas.”
E, de alguma forma, após um longo jogo de telefone sem fio virtual, essa informação terminou distorcida em algo como (parafraseando) “presidente da Kadokawa quer censurar mangás para agradar Google e Apple”.
E isso, meus amigos, é a internet pra vocês!
Ah, e só para que isso não fique sem menção: é verdade que, após o “incidente”, a Kadokawa lançou um comunicado à imprensa onde diz que as opiniões de seu presidente não refletem as da companhia. E eu deixo para o leitor decidir se isso é bom ou ruim.
Atualizações
1. Lendo com mais calma a thread de @nmisaki (algo que, admito, devia ter feito logo de início), parece que há de fato excertos da fala de Natsuno que foram omitidos na matéria escrita, incluindo ai um onde ele menciona a dificuldade do mangá de passar no crivo de plataformas como Google e Apple.
Contudo, o contexto é no mínimo ambíguo, e é perfeitamente possível (diria mesmo provável) que ele estivesse se referindo ainda às gravuras de idols de maiô, e como estas atrapalham a divulgação de certas revistas nas plataformas.
Ainda assim, admito que é interpretação minha, e o leitor é livre para conferir o original e formar a própria opinião.
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Imagem de capa: Hitoribocchi no Maru Maru Seikatsu, episódio 10
Hahahaha
Ler isso foi quase uma aventura!
Toda vez que vejo esse tipo de situação reflito um pouco sobre a preguiça que temos atualmente, mal lemos um título de matéria e já a compartilhamos. Mesmo que, como citado, sejam ferramentas que qualquer pessoa com acesso à internet pode usar, ainda assim demanda trabalho, coisa que a maioria das pessoas preferem evitar.
Também tem o ponto de ser do mesmo viés de quem lê as postagens do dito cujo, falar mal do “politicamente correto”, sendo ou não verdade, parece aceitável.
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Meu caro, você fez um verdadeiro trabalho jornalístico nesse caso, você apurou a informação e foi direto a fonte e ainda por cima contextualizou a publicação e ainda colocou a posição da empresa em relação a declaração do dito cujo em relação ao caso. Nesses tempos de fake news e desinformação, um trabalho desse fica ainda mais importante. Muito obrigado e abraços,
Ricardo.
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Não querendo ser tóxico, jamais, porém eu deixei de acompanhar “”fontes”” como Intoxi Anime a um bom tempo. Sei lá, parece que o pessoal daquele blog/canal só quer criar uma guerrinha online, principalmente quando envolve esse negócio de politicamente correto e o mundo dos animes, onde qualquer pessoa que critique animes como Redo of Healer já é taxado como lacrador, politicamente correto, etc…
Enfim, sobre a segunda fonte, Kudasai, esse eu conheço bem, até porque eu também tenho uma página e blog de notícias e curiosidades sobre animes e mangás. As vezes tem algumas polêmicas envolvendo o site, porém no geral é uma fonte confiável. Enfim, sobre o seu texto, ficou bem completo eu diria, o único blog que eu conheço que vi gente se preocupando com a fonte primária dessa polêmica toda. Parabéns! Merece sucesso!
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