Um pacífico apocalipse
Na monotonia do dia a dia, onde um por vezes parece se mesclar ao outro, podemos por ocasião nos esquecer de uma simples verdade: a de que o tempo passa. E ele sempre passa.
Essa é a mensagem que eu tiro de Yokohama Kaidashi Kikou, mangá de Hitoshi Ashinano que foi publicado na revista seinen Monthly Afternoon de 1994 a 2006. Um dos maiores expoentes do iyashikei, esta é uma história sobre o tempo.
Se passando num futuro não especificado, temos aqui que o nível do mar subiu o bastante para engolir boa parte da costa do Japão.
Nossa protagonista é Hatsuseno Alpha, uma robô de trejeitos bastante humanos, que gerencia o Café Alpha. Posta no cargo por seu dono, antes deste sair em viagem, Alpha passa os dias esperando a sua volta, trabalhando no Café e interagindo com a população local.

Slice of life, não seria de surpreender ninguém dizer que o mangá trabalha com temas como a mudança e o comming of age. Estes são, afinal, bastante caros ao gênero. Ainda assim, há algo de diferente na forma como Yokohama trabalha com essas ideias.
Isso é algo que eu mesmo só vim a notar nos seus capítulos finais – e, bom, acho que aqui é um bom lugar para o aviso de spoilers. Se ainda não leram esse mangá, fica desde já a indicação.
Mas continuando: conforme você vai lendo, é difícil não notar como a história acelera em seus capítulos finais. Anos se passando entre uma página e outra. E enquanto isso faz o final soar apressado, eu acho que também é parte do ponto.
Certo, vamos dar um passo para trás. Comecemos do começo.

Os primeiros capítulos de Yokohama Kaidashi Kikou têm uma relação bastante estranha com o tempo, e com isso que quero dizer que este mal parece se fazer presente. Nunca fica claro quanto tempo se passou entre um capítulo e outro, e estes bem poderiam ser embaralhados sem grandes prejuízos à história do mangá.
É somente com o andar da série que o tempo vai ganhando contornos mais definidos. Alpha faz amizade com muitos dos locais, e o reaparecimento de certos personagens vai criando ai uma cronologia mais clara.
O tema da mudança é também introduzido bem cedo na história, sobretudo por parte dos dois personagens mais velhos: o “vovô” e a “doutora”, que vez ou outra refletem sobre como as coisas mudaram desde a sua juventude.

Mas enquanto você já não pode embaralhar esses capítulos sem afetar a narrativa, a passagem do tempo ainda é bastante vaga. Quase como se o próprio mundo fosse ainda acronológico.
Isso começa a mudar quando, numa noite qualquer, um furacão atinge a região da história. Um que acaba por destruir o Café Alpha.
Nossa protagonista decide então aproveitar o momento para partir em uma viagem. E enquanto ela está fora, esse sentimento de um tempo que não passa se mantém. Isso muda, porém, quando ela retorna: um ano após a sua partida.
A partir desse ponto, o mangá parece dar bem mais importância à passagem do tempo. Os personagens notam o mudar das estações, e falam abertamente sobre quantos anos se passaram.

Takahiro está crescendo, e não só em altura. Logo ele decidirá deixar a região em favor de ir estudar – e trabalhar – na cidade. E ainda que demore alguns capítulos, Matsuki vai eventualmente seguir os seus passos, e daqui pro final o mangá acelera bastante. Os dois se casam offscreen, e têm uma filha. No último capítulo, esta já estava até bem grandinha.
E tudo isso é, em certo sentido, contrastado com a mesmisse do dia a dia da Alpha. Um dia a dia que não é de forma alguma ruim, mas que ainda assim faz do tempo algo bem pouco distinto.
Acho que todos nós já passamos por algo assim, talvez até múltiplas vezes. Imersos na nossa própria rotina, em dado ponto olhamos para trás e notamos o quanto as coisas mudaram.
É interessante como, para aquele mundo, a própria Alpha deve parecer uma constante.

Em dois capítulos, que se passam com dez anos de distância um do outro, vemos o Café pelos olhos de um de seus visitantes. Ao ir embora pela segunda vez, o personagem diz que talvez ele volte dali dez anos, crente que a Alpha ainda estará lá – como sempre.
Existe conforto na mesmisse. Em saber que as coisas continuarão como estão. Mas claro: mesmo a Alpha não é imune à mudança.
Sim, como robô ela é imortal. Mas o mundo ao seu redor não é. O mar continua subindo, sempre aos poucos. Na região onde ela vive, moram ainda apenas os idosos, e um dia eles irão partir, de uma forma ou de outra. O próprio Café passou por toda sorte de reformas nos anos após o furacão. E por mais que seu corpo não mude, sua perspectiva pode mudar.

De certa forma, Yokohama é a história da Alpha sendo confrontada com a mudança.
Quando o mangá primeiro começa, a própria Alpha mal parece estar ciente da passagem do tempo. Após o seu retorno, porém, ela percebe o quanto as coisas começaram a mudar nesse ano em que ficou fora. Ao final, restam apenas as lembranças dos dias que passaram, junto à promessa dos dias por vir.
Imersos na rotina, por vezes perdidos num dia a dia onde um parece se mesclar com o outro, podemos acabar nos esquecendo de que o tempo passa. E ainda assim, o tempo passa. Ele sempre passa.
–
Venha discutir este artigo no nosso grupo no facebook!
–
Imagem de capa: Yokohama Kaidashi Kikou, volume 1
Fico feliz desse manga ainda ser lembrado, pois gosto muito dele. Lembro até hoje de sentir a sensação do vento batendo no meu rosto só de ler o mangá enquanto a Alpha andava de avião. Foi bom você escrever sobre a passagem do tempo e a sua percepção pelos personagens. São questões das quais eu não me lembrava muito e que realmente são tratadas na obra.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Recentemente li Yokohama, na verdade, terminei hoje mesmo de ler essa obra e achei simplesmente incrível a leitura…
A obra por si me deu um sentimento de angustia pela progressão de tempo que de fato é incrível, a rotina em “loop” da Alpha e as mudanças que ela testemunha durante toda a obra me deu a angustia do tempo passando e como ele passa progressivamente sem você perceber. Claro, isso é uma percepção minha pelo o que a obra me trouxe, a progressão por si desde o meio ao final da obra e sem duvidas muito bem feita, nos pequenos detalhes dá pra perceber o tempo passar, como a grama crescendo, o cabelo e barba de alguns personagens e capítulos de viagens da Alpha.
Mas, essa angustia que sentir me fez refletir sobre o que estamos passando recentemente na quarentena e também sobre o tempo em si, essa obra me fez sentir algo tão real e acho que vale a releitura.
Adorei sua analise sobre a obra:)))
CurtirCurtido por 1 pessoa