Fazer anime é um pesadelo!
Lançado em janeiro de 2020, Eizouken ni wa Te wo Dasu na já se firmou como um dos animes mais criticamente aclamados de seu ano, e por um bom motivo. A mais nova produção do estúdio Science Saru, com Masaaki Yuasa na direção, é um verdadeiro show de visuais e personagens, uma história que encanta e cativa desde os seus primeiros minutos.
Adaptando em seus 12 episódios ao mangá homônimo de Sumito Owara, nossa história começa com um grupo de três amigas improváveis: a tímida e aficionada por anime Asakusa, a mais extrovertida, mas igualmente fanática por animação Mizusaki, e a indiferente, mas oportunista Kanamori. Juntas, as três abrem em sua escola um clube dedicado a fazer anime, ao que se seguem os mais variados desafios.
Falar assim pode fazer Eizouken soar como outro desses animes de clube escolar, e eu até diria que ele brinca um pouco com alguns dos estereótipos mais comuns do gênero, mas acreditem quando eu digo que esta é uma obra que vai muito além disso.

Em essência, esta é uma história sobre animação. Sobre o processo de se produzir um anime. Os variados desafios e dificuldades inerentes a esse processo. E mesmo sobre o que tudo isso significa para aqueles envolvidos. Uma forma de dar vida à própria imaginação. Uma forma de reafirmar a própria existência. Mesmo tão somente uma forma de fazer dinheiro. É um anime tematicamente bastante rico, devo enfatizar.
Quem ainda não o assistiu, deixo aqui a minha mais sincera recomendação. No mais, spoilers a frente. E vamos com a review!
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Asakusa: Criatividade Irrestrita
Antes, um breve prefácio. Eu debati por algum tempo qual seria a melhor forma de escrever este texto, e se eu devia, em especial, abordar às três protagonistas individualmente ou como um conjunto. No fim, optei por abordá-las individualmente, o que, a um primeiro olhar, faz a maior parte desta review soar como pura análise de personagem – o que não é bem o caso.

O motivo pelo qual eu decidi comentar cada personagem em separado é porque eu acredito que cada uma encarna muitos dos temas e muitas das mensagens e provocações que o anime tenta passar. Em grande parte justamente porque estes temas estão intimamente ligados com quem essas personagens são. E nisso a Asakusa é um excelente ponto de partida.
Como pessoa, Asakusa é uma garota bastante tímida e introvertida, do tipo que tem dificuldade de se aproximar dos outros. Mesmo seu design reflete isso, pondo-a como a menor das três protagonistas. Mas assim como muitos introvertidos, basta darem corda para a menina que ela parece se transformar no seu completo oposto!
Quando o assunto é anime, Asakusa consegue falar com uma empolgação que é até mesmo sufocante para quem escuta – Kanamori que o diga. E se a sua personalidade é marcada pela timidez, sua imaginação beira a hiperatividade.

Para quem deseja ingressar numa indústria que é, em sua base, criativa, ter uma imaginação fértil pode soar como uma benção, e em algum nível de fato o é (bloqueios criativos são, afinal, o maior pesadelo de qualquer um que vive da sua imaginação). Mas é o terceiro curta que as garotas criam aquele que melhor demonstra as armadilhas de se ser criativo até demais.
Em particular, Asakusa tem dificuldade de se manter focada. Ela está sempre imaginando máquinas e cenários dos mais diversos, o que atrapalha quando ela precisa se concentrar em um projeto em específico – de novo, Kanamori que o diga.
Por outro lado, sua personalidade mais tímida, mesmo mais ansiosa e talvez até beirando a fobia social, a torna bastante propensa ao chamado overthinking.
Vemos isso com mais força quando do segundo curta que as garotas produzem. Tendo como ponto axial a figura de um robô gigante, em dado momento a Asakusa começa a pensar no quão impossível – ou, no mínimo, imprático e desnecessário – algo do tipo seria na realidade. Sua solução? Abandonar o projeto e recomeçar do zero! Obviamente a Kanamori não deixa.

É importante destacar aqui que, como alguém que desenha sobretudo máquinas e cenários, Asakusa é uma pessoa que valoriza bastante o realismo das suas criações.
Em algum nível, ela o faz por si mesma. Porque legitimante se maravilha com ver essas máquinas fictícias funcionando como funcionariam na realidade. Vemos isso logo no primeiro episódio, quando estão ela e a Kanamori na exibição do clube de anime de sua escola e a Asakusa elogia o realismo da máquina voadora numa cena de Mirai Shounen Connan.
Mas também em algum nível podemos dizer que essa preocupação é externa. Asakusa não quer abandonar a ideia de um robô gigante porque não é uma máquina realista. Ela teme que alguém na plateia diga que o robô não é uma máquina realista. Pelo menos nessa instância é o medo do julgamento alheio que fala mais alto – e que precisa ser podado.

Em parte o anime já havia dado uma resposta a esse dilema da Asakusa. Numa reunião anterior com aqueles que pediram pelo curta, o grupo discute a própria irrealidade do robô gigante como conceito, e terminam por concluir que, real ou não, o que importa é que robôs gigantes são legais. Nem sempre o realismo é algo necessário, ou mesmo desejável.
Nesse momento, porém, essa resposta não basta para a Asakusa. É então que entra a Kanamori, dizendo que a garota deveria se focar em fazer um robô com o qual ela ficasse satisfeita – e que se dane o que a plateia diria. E é exatamente o que a Asakusa faz: alterando ligeiramente o interior do robô para que ele ficasse mais verossímil.
Algo similar acontece quando do terceiro curta, onde Asakusa cria uma arma laser antiaérea e se recusa a colocar um raio laser saindo dela porque… bom, não é assim que máquinas do tipo funcionam!

A princípio, Kanamori tenta convencê-la de que esse apego ao realismo tornaria difícil para a plateia entender o que é aquela máquina e para que ela serve, o que por si só nos faz pensar em quantos dos tropes e clichês mais comuns da ficção não existem justamente para que a audiência entenda algo que seria difícil de entender de outra forma.
Asakusa, porém, argumenta que é possível passar o que aquela máquina faz apenas com som e edição. Mostre a máquina. Coloque o som dela ligando. Mostre o disco voador explodindo. É informação o bastante para que as pessoas juntem as peças e entendam o que aconteceu.
Nem sempre o realismo é necessário, mas às vezes ele pode ser bem-vindo. Nem sempre o artista consegue realizar sua plena visão, mas não significa que a tenha de jogar fora por completo. É nesse eterno balanço que se faz anime – como a Asakusa vai, aos poucos, aprendendo.

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Mizusaki: Sutilezas do Movimento
Em personalidade, Mizusaki é o completo oposto da Asakusa. Extrovertida, a garota é também uma modelo profissional, e uma que sabe muito bem como lidar com a atenção que recebe das pessoas a sua volta. Mas tal como a Asakusa, Mizusaki nutre uma profunda paixão pela animação – ainda que mesmo aqui as duas sejam um pouquinho diferentes.
Asakusa é alguém que se encanta com conceitos. Com mundos e maquinários. Mizusaki, porém, é alguém que dá muito mais foco ao movimento, sobretudo o movimento de pessoas. E muito como a Asakusa tem certa obsessão pelo realismo de suas máquinas, Mizusaki se prova bastante preocupada com o realismo do movimento de seus personagens.

A princípio, tal preocupação soa bastante legítima. Que mal há em se buscar um movimento mais detalhado e fluido? Bom, nenhum… se você tem todo o tempo do mundo. Maior detalhe significa mais quadros por segundo. Mais desenhos que precisam ser feitos. Mais tempo gasto em uma única cena. E quando prazos são uma realidade, isso é algo que pode facilmente gerar um efeito bola de neve que atravanca toda a cadeia produtiva.
Múltiplas vezes ao longo do anime, Mizusaki diz que quer fazer animação, e não anime. Acho que cabe aqui alguma explicação do que ela quer dizer com isso.
Aqui no ocidente, existe a noção de que “anime” é apenas a palavra japonesa para “animação”, e que portanto, num sentido mais “correto” do termo, tudo desde Dragon Ball e Saint Seiya até Bob Esponja e as produções Disney são, em fato, “anime”. O que não está errado, exatamente, mas também não conta a história toda.
Aqui cabe uma distinção entre duas grandes vertentes da animação japonesa: aquela voltada para o cinema e aquela voltada para a televisão.

A primeira é uma que vem desde os primórdios da animação no Japão, mas a segunda é muito mais recente. Esta teve em Osamu Tezuka o seu grande pioneiro no Japão, e já desde Tetsuwan Atom, de 1963, era marcada por toda sorte de “atalhos” para tornar a produção de cada episódio mais rápida e economicamente mais viável [1].
Essa segunda vertente foi e ainda é marcada pela chamada “animação limitada” (limited animation), que recebe esse nome porque, aqui, um mesmo desenho poderia durar múltiplos frames. Em contraste com a chamada “animação total” (full animation) das produções para o cinema, onde a cada frame correspondia um desenho diferente.
Acredito que quando a Mizusaki traça uma distinção entre “anime” e “animação”, é a isso que ela se refere. Ainda hoje o anime para a TV é marcado pela animação limitada. Preste atenção na próxima vez que estiver vendo um episódio e perceba a quantidade de cenas nas quais bem pouca coisa está de fato se movendo.

Para o grande público, essa distinção sequer existe. Que é de onde vem que, hoje, “anime” é sinônimo de “animação”. Mas Eizouken parece demonstrar que, pelo menos no meio profissional, ainda há ecos dessa antiga dicotomia. E é claro que uma vidrada em animação como a Mizusaki saberia dela e se expressaria dessa forma.
Mas é “anime” o que as garotas estão fazendo, e não “animação”. Há prazos a cumprir, bem apertados até, e uma atenção demasiada ao realismo no movimento faz com que Mizusaki perca muito mais tempo que o necessário em uma única cena. “Feito é melhor do que perfeito” é o compromisso que se precisa assumir quando se entra nessa indústria.
De onde vem, então, essa ânsia da Mizusaki pelo realismo? Mais uma vez, parece haver aqui uma mescla de motivações internas e externas, ainda que sem a ansiedade e o medo que marca muito dos anseios da Asakusa.

Durante o curte do robô gigante, Kanamori e Mizusaki tem outra discussão sobre o realismo do movimento. Kanamori é a mais prática do grupo: após um certo ponto, quase ninguém na plateia notaria uma diferença significativa no detalhe da animação. A resposta da Mizusaki? De fato: mas alguém iria. E é para essas pessoas que ela quer dar o seu melhor.
Não se trata, porém, de uma motivação puramente externa. De temer que alguém diga que sua animação não estava boa o bastante. Antes, trata-se de uma declaração. De que ela entende. De que ela se importa. De que, como a Mizusaki coloca, ela está ali. Sua arte é a forma pela qual ela reafirma a própria existência.
O que é no irônico, convenhamos. Mizusaki já era uma modelo até que bastante famosa. Vemos seu rosto em múltiplos anúncios na cidade, e as pessoas na rua vira e mexe a reconhecem. Ainda assim ela troca isso pelo que é essencialmente um trabalho de bastidores. Digo, quantos de vocês conseguiriam elencar, de cabeça, os nomes de cinco ou seis animadores? Eu sei que eu não conseguiria, e imagino que isso valha para o público mais amplo.

Ainda assim, não é fama que a Mizusaki busca. Tanto que ela é sempre contra usar da própria fama para atrair público para os curtas do Eizouken. Porque o que ela quer é que sua arte tenha reconhecimento – não o seu rosto.
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Kanamori: Pelo Dinheiro!
E fechando o grupo principal, temos a producer do Eizouken: nossa duramente realista Kanamori! Uma personagem que fica numa posição bem curiosa.
Por um lado, Kanamori é uma outsider. A seu modo, tanto a Asakusa quanto a Mizusaki são duas vidradas em anime. Kanamori, porém, nunca havia pensado muito sobre a mídia, e desde o começo deixa bem claro que só entrou nessa pelo dinheiro. Nisso, ela muitas vezes faz o papel do público. Do grande público, digo, sempre apontando quando algo já está “bom o bastante”.

Isso fica evidente já durante o primeiro curta. Em dado momento da produção as garotas já têm várias cenas prontas, mas Asakusa se preocupa se terão tempo de fazer a história. A solução da Kanamori? Abandonar a história! O visual já estava legal o bastate.
Não se trata, porém, de tentar fazer o mínimo possível e aceitar isso como resultado. Ainda que a Kanamori deixe bem claro que pra ela algo ainda é melhor do que nada, nesse momento em particular o curta de fato estava bom o bastante. Kanamori apenas notou isso e decidiu que era melhor realocar esforços para outras partes do projeto.
Em meio a duas personagens que estão sempre buscando a perfeição em cada mínimo detalhe, Kanamori surge muitas vezes como a voz da razão, aquela que diz que, em algum ponto, o projeto precisa ser concluído, perfeito ou não. E que, para a vasta maioria das pessoas, essa tal perfeição não faz a menor diferença.

Por outro lado, Kanamori por vezes soa como a mais investida no Eizouken. Na prática o clube sequer existiria sem ela, visto que foi ela quem deu o incentivo de que as outras duas precisavam, e é também a Kanamori aquela que se esforça com mais afinco para manter o clube funcionando, por vezes até batendo de frente com a escola e o conselho estudantil.
Sob esta perspectiva, eu diria mesmo que a Kanamori encarna muito do que faz o anime… bom, anime. Basta lembrar do que eu disse um pouco mais pra cima, sobre as origens do anime para a TV, e de como ele já nasce num delicado balanço entre prazos apertados e verbas mais apertadas ainda.
Kanamori é a restrição, sob múltiplos aspectos. Quando a Asakusa sai em alguma de suas várias tangentes, é a Kanamori quem a traz de volta ao foco. Quando a Mizusaki quer detalhar ao máximo o movimento de uma cena, Kanamori a lembra de que prazos existem. Em meio a duas que parecem viver no próprio mundinho, Kanamori é o lastro do Eizouken com a realidade.

Anime é uma mídia que nasceu da restrição. Se isso é bom ou não é algo aberto a interpretação. Mesmo hoje essa herança dos tempos de Tetsuwan Atom é conhecida na indústria como “a maldição de Osamu” [2]. Mas bom ou ruim, é a realidade. E Kanamori está ali para lembrar as outras disso.
É possível também, no entanto, ver na Kanamori muitas das críticas mais comuns não só aos animes em específico, mas também a qualquer mídia mais comercial.
Sua capacidade de identificar quando algo está bom o bastante para o grande público também implica em se nivelar a produção por baixo. Sua preocupação com prazos e verba significando que por vezes as duas artistas precisam comprometer a sua visão em favor do que é mais viável. Mas a quem fizer estas críticas, Kanamori responderia: bom, qual a sua sugestão, então?

É uma discussão que o grupo tem múltiplas vezes ao longo da série. Fazer anime não é uma brincadeira: é um negócio. Que exige comprometimento, responsabilidade e dedicação. Que requer uma série de engrenagens girando em conjunto, sob risco de travar toda a máquina se só uma delas sair do ritmo. E, diga-se de passagem, ao longo da série bem vemos as consequências dessas engrenagens que saem de ritmo.
Eizouken foi bastante descrito como uma carta de amor a animação, mas essa carta também gosta de mandar algumas indiretas aqui e ali. Desentendidos que atrasam a produção. Incompetência e estrelismos que afetam a fluidez do trabalho. Imprevistos dos mais diversos. Horas extras constantes. Para todos os efeitos, esta não é uma indústria gentil.
Paixão é importante, sem sombra de dúvidas. Mas a paixão sem um plano é difusa. É o caderno da Asakusa, repleto de conceitos que nunca se tornaram mais do que isso. Kanamori fornece às garotas esse plano. Pode não ser o melhor, nem o mais agradável. Mas ei: qual a sua sugestão, então?

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Tanques, Robôs e Kappa
Mudando agora o foco da review, eu gostaria de dedicar alguns parágrafos aos três curtas que as garotas produzem. Isso porque, muito como as próprias personagens, cada um deles traz uma série de temas e ideias que podemos discutir.
Começando pelo primeiro curta, aquele da luta entre uma garota e um tanque, eu quero chamar atenção para a exibição do curta perante a escola durante o processo de aprovação do clube pelo conselho estudantil. Um momento que eu destaco por dois motivos.
O primeiro destes é como o anime decide retratar o impacto que o curta tem nas pessoas. É como se ele saltasse para fora da tela, a tal ponto que ao final uma personagem ao fundo até pergunta a outra se o curta não era mesmo em 3D. Um momento que, penso, diz muito sobre o potencial de imersão da ficção, de nos “sugar” para outros mundos como se de fato estivéssemos ali.

Mas talvez o mais interessante vem pouco depois. Porque enquanto estão todos elogiando o curta e pensando no quão incrível ele foi, nossas três protagonistas só fazem comentar em pontos que poderiam melhorar ou fazer diferente. O que nos leva a um dos temas mais recorrentes em Eizouken: o do artista como seu maior crítico.
Isso é algo que retorna quando do segundo curta. Ao final de sua exibição, à qual compareceram os pais da Mizusaki, esta os confronta e, finda a conversa, pergunta se os dois, atores como são, já ficaram satisfeitos com alguma performance. A resposta de ambos: um sonoro “não”.
Estes dois momentos, aliados a vários outros ao longo da série, evidenciam como, por vezes, o artista pode ser bastante crítico consigo mesmo. O que é, eu diria, natural. Quando você produz algo você sempre termina bastante consciente de quais os pontos em que poderia melhorar. Não de todos, é óbvio, mas de muitos, sem dúvida.

Mas fiquemos ainda nesse segundo curta, porque ele como um todo permite ainda outras considerações interessantes. Em particular, acho que vale aqui discutir a questão da autoria.
Neste segundo curta, as garotas foram essencialmente contratadas para fazer um anime sobre o robô gigante da escola. O tema já está dado, e por mais liberdade que a Asakusa tenha para bolar a história, ela ainda precisa, primeiro de tudo, manter o próprio robô gigante e, claro, sempre do aval do clube que as contrataram.
Ao final, podemos dizer que o curta é a visão da Asakusa? Ela o dirigiu, sem dúvida, mas quanto do curta é “ela” e quanto dele é todos os demais envolvidos no processo? É uma pergunta difícil de responder, e que nos faz lembrar do quão colaborativa é essa mídia.

Se me permitem a pequena tangente, é uma consideração que podemos estender até mesmo para o próprio Eizouken. Desde que o anime saiu ele foi saudado como o novo anime do Masaaki Yuasa, mas quanto de Eizouken é “Yuasa” e quanto dele é, digamos, “Sumito Owara”, que escreveu o mangá original? É difícil dizer.
Pra terminar, temos então o terceiro curta, outra produção independente das garotas, desta vez uma guerra entre humanos e kappa, figura mítica japonesa.
Aqui, eu quero destacar apenas a última cena, exatamente aquela que fecha o anime. O momento em que toda a cidade parece colocar o curta para tocar. Por si só é uma cena que fala do caráter social que o anime pode ter, de como uma obra pode unir pessoas ao seu redor. Mas ainda mais interessante, pelo menos pra mim, é o que ocorre uma vez que o curta termina.

Nesse momento, algumas pessoas olham pela janela de suas casas, e começam a ver, na cidade lá fora, exatamente o que se passava no curta. Em parte isso é mais um aceno ao caráter imersivo da ficção, mas acho que desta vez vai mesmo um pouquinho além.
É preciso lembrar que a Asakusa fez todo o cenário do curta inspirado naquela cidade, usando de localidades e pontos de referência reais. Esse final me parece uma reflexão sobre o potencial da ficção de nos fazer enxergar o mundo ao nosso redor com outros olhos, ou mesmo de ressignificar a nossa relação com certos espaços.
Com tantos animes baseados em locais reais, me faz pensar em quantas cenas do tipo já não se desenrolaram, de uma forma ou de outra, também nesse nosso mundo.

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Eizouken VS. Shirobako
Na maioria dos casos, eu tento evitar de ficar comparando animes nessas minhas reviews. De quando em vez, porém, eu abro uma exceção.
Desde que saiu, Eizouken foi bastante comparado com Shirobako. Raramente de forma mais analítica ou mais aprofundada, vale dizer, mas quase sempre num contexto de que se você gostou de um, provavelmente vai se interessar pelo outro. O que soa compreensível, afinal não há lá muitos animes que abordem o processo de produção de um anime.
Eu penso, porém, que comparações do tipo ignoram o que cada título tem de particular. E que, ao final do dia, ambas as séries são muito mais diferentes do que as pessoas têm dado crédito. O que talvez soe estranho, já que são ambos animes sobre fazer anime. Mas a isso eu pergunto: Shirobako é mesmo sobre fazer anime?

Pessoalmente, penso que não. Shirobako se passa em um estúdio, sim, e nossas protagonistas são cinco garotas que tentam ingressar nessa indústria. Tudo isso, porém, é muito mais cenário do que tema, de fato.
Shirobako, na minha leitura, não é um anime sobre fazer anime. Antes, ele é um anime sobre o início da vida adulta. Sobre o começo de carreira. As dificuldades desse período da vida. Sobre o contraste entre as suas expectativas para o seu futuro e como ele acaba sendo de fato, e as angústias que nascem dessa distinção.
Se Shirobako se passasse em qualquer outro ambiante, seus temas e mesmo suas personagens poderiam seguir praticamente intocados. Que ele se passe em um estúdio de animação é… coincidência, e isso na melhor das hipóteses. Eizouken, porém, é diferente.

Aqui sim anime – e animação – é tema de fato. Não é a toa que muito se descreveu Eizouken como uma carta de amor a essa mídia, como mencionei mais cedo.
Eizouken não poderia existir em outro cenário. Suas ideias, mensagens, mesmo suas personagens dependem desse seu foco no anime enquanto mídia e enquanto indústria. E é por isso que eu não acho que a comparação com Shirobako se sustente.
Não me entendam mal, ambos são ótimos animes que eu muito recomendo a qualquer um. Mas eu acho importante diferenciar quando algo numa história é estética e quando ele é tema. O fazer anime, em Shirobako, é estética. Em Eizouken, é tema. Ambos fornecem um olhar sobre essa indústria. Mas suas preocupações são diferentes.

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Encerrando…
Quando terminei de assistir ao episódio final de Eizouken, não pude evitar uma sensação de “espera… é isso?” Sentia que faltava impacto a esse final, e imaginei que fosse por conta de ser, como é de praxe, a adaptação de um mangá ainda em lançamento.
Agora, isso não está errado, mas devo dizer que após refletir um pouco a respeito eu acabei por apreciar muito mais esse final do que havia inicialmente. Porque, há de se reconhecer, ele até que é bastante conclusivo, quando você para pra pensar.
Nós começamos Eizouken com a Asakusa dizendo que era seu sonho fazer um anime que se passasse naquela cidade. Uma pela qual a garota se encantou tão logo sua família se mudou para lá. E ao final é exatamente como terminamos. Pra ser sincero, é difícil pensar em um ponto melhor para se encerrar a série.

Vale apontar que a Mizusaki já teve a sua conclusão alguns episódios antes, quando consegue a bênção de seus pais para fazer anime. E que a Kanamori, não tendo realmente um objetivo concreto para além de só “fazer dinheiro”, não é o tipo de personagem que pede por uma conclusão.
Isso não é dizer que Eizouken não deixe pontas soltas. Por exemplo, temos a relação do clube com a escola e, mais especificamente, da Kanamori com a secretária do conselho estudantil, num embate de ideais até que bastante interessante sobre qual deveria ser o papel da escola na formação de seus alunos: se a de um microcosmos da sociedade ou se a de um espaço seguro alheio a esta.
Mas ainda assim: para o que foi, Eizouken superou quaisquer expectativas, e olha que estas já eram altas só por conta da equipe envolvida. É um anime fantástico, e não me surpreenderia se se tornasse um clássico moderno (se é que isso ainda é possível, em tempos tão rápidos e difusos).
Um dos melhores animes de 2020, se por algum motivo você chegou até aqui nesta review sem o ter assistido ainda, fica mais uma vez a minha recomendação.
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Notas:
1. Quem quiser saber mais a respeito, recomendo muito a leitura do livro Anime’s Media Mix, de Marc Steinberg.
2. Sobre o termo “a maldição de Osamu”, recomendo a leitura do livro Japanamerica, de Roland Kelts. Em particular o seu segundo capítulo, “Atom Boys”.
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Imagem de capa: Eizouken ni wa Te wo Dasu na, episódio 1
Review mais do que excelente!
Não tenho o que acrescentar em questão de elogios à produção, que realmente já pode ser considerada uma das melhores do ano, levando em conta não apenas a execução temática, e sim o próprio conceito desta obra.
Então, gostaria de deixar aqui uma visão um pouco negativa sobre algo que me fazia “sair do anime”, conforme o via semanalmente. Algo que nem sei se posso considerar como um problema da história per se, ou se da minha relação com ela, de como eu me sentia. No caso, em muitos momentos a caracterização das personagens me parece um tanto irreal para suas realidades. Ainda que o cenário de Eizouken não seja dos mais normais, a obra continua sendo bastante “pé no chão” em muitos detalhes, usando-se de experimentações visuais malucas apenas quando com a finalidade de retratar a imaginação fértil de seus personagens.
Contudo, em determinadas ações e discussões das personagens, em especial a Kanamori, eu conseguia ver ali muito mais a encarnação de um figurão da indústria, com muita experiência de vida, do que de uma adolescente que apenas entende um pouco mais que o normal sobre organização financeira e gestão de tempo, dado sua criação. As próprias discussões sobre o ambiente escolar, o preparo para a sociedade, dentre outras que possuem um viés bastante maduro, me tiravam da obra em um nível que diversos outros elementos, que poderiam soar inverossímeis, não faziam.
Acredito que faltou sutileza em abordar estas questões, que me soaram mais inverossímeis que a própria super produção que aquelas garotas, com recursos bastante limitados, conseguiram criar. Mas, como disse anteriormente, talvez seja um problema mais exclusivamente meu, tendo dificuldades em abstrair certas coisas e me deixar levar pela história. Sinto que determinadas passagens poderiam funcionar melhor em um documentário sobre a indústria, vindo de gente que demonstra experiência em suas próprias faces, do que em um anime escolar, preso a certos padrões.
De toda forma, ressalto novamente que gostei da obra, da review e aproveito pra corroborar com sua visão sobre Shirobako não ser realmente um anime sobre fazer animes, por mais que seja, talvez, aquele que melhor tocou nisso antes de Eizouken. E, ainda nesta discussão, daria pra dizer que Sakura Quest é o melhor exemplo que temos dos temas de Shirobako sendo realocados para um ambiente diferente?
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Hum, não sei muito o que dizer quanto à Kanamori. Por um lado, eu concordo que ela muitas vezes soa muito mais madura do que deveria ser para a idade. Por outro, eu diria que faz sentido tanto ao nível da personagem, com ela sendo o tipo de pessoa que se informaria e aprenderia mais sobre o que tem interesse (negócios, nesse caso), como também ao nível da série, visto que Eizouken tem lá seus vários momentos de exagero rs. Pessoalmente, porém, não é algo que tenha me incomodado xD Mas entendo o ponto.
Sobre Sakura Quest, vou dizer que quase mencionei o anime no texto kkkkk Só não o fiz porque, né, não precisava de ainda um terceiro comparativo xD Mas é um bom exemplo sim. Ainda que eu veja que as respostas que Sakura Quest dá diferem das de Shirobako, em termos de problemática os dois lidam mesmo essencialmente com os mesmos temas.
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