Uma ode às boas lembranças.
Existem obras que são difíceis de se comentar, ou mais precisamente, que são difíceis de colocar em palavras a sua opinião sobre elas. Não tanto por uma falta de vocabulário, ou mesmo por uma falta de argumentos, mas mais porque, às vezes, parece que palavras simplesmente não fazem jus ao que você quer expressar.
Foi com estas palavras que eu abri a minha review da série Aria, e justamente por isso me parece apropriado repeti-las ao falar do anime que é, sob muitos aspectos, uma espécie de sucessor espiritual daquele. Uma produção do estúdio Hal Film Maker, dirigida por Jun’ichi Satou. Uma série que começou como singelos 4 OVAs em 2010, recebendo depois duas temporadas de 12 episódios cada e uma finalização em quatro filmes.
Tamayura começa quando Sawatari Fuu retorna à cidadezinha de Takehara, uma que ela visitava bastante quando pequena, mas na qual não havia pisado desde a morte de seu pai, cinco anos antes. Agora, porém, sua família se muda para cá, e um novo capítulo se incia na vida dessa garota aficionada por fotografia.
O lidar com o luto. O reatar de velhas amizades e a confecção de outras novas. E claro, o crescimento individual de cada personagem. Essas são apenas algumas das marcas desse anime que se destaca ainda por uma fantástica direção, trilha sonora, e atmosfera. Uma bonita mescla de conforto e melancolia, que constantemente te faz chorar com um sorriso no rosto.
Como de costume, spoilers a partir deste ponto. Se você ainda não assistiu esse anime, fica aqui a recomendação. E aos que decidirem seguir em frente: uma boa leitura!
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4 OVAs. 2 Temporadas. 4 Filmes.
Eu quero começar essa review comentando separadamente cada iteração dessa franquia. Isso porque é bastante curioso como as abordagens diferem umas das outras.
Tamayura, a série de OVAs que deu início à série, soa quase como um episódio piloto para a franquia. Isso não é dizer que eles não formem aqui uma unidade: eles claramente foram pensados como uma história com início, meio e final. Mas postos no contexto maior, esses quatro episódios de quinze minutos cada servem sobretudo como uma introdução.
Somos apresentados aqui à premissa da série, bem como às nossas quatro personagens principais e a boa parte do elenco secundário (como a irmã mais velha da Kaoru, Sayomi, ou a dona da lanchonete especializada em Okonomiyaki, Chimo, aqui ainda conhecida apenas como Hoboro). E claro, temos já bastante presente a atmosfera que é tão característica de Tamayura.
Tamayura Hitotose é, em grande medida, uma expansão do que havíamos visto nos OVAs, algo que inclusive vemos desde o primeiro episódio. Nele, vemos um pouco da vida da Fuu na cidade grande, além da sequência de eventos que a levaram a retomar o gosto pela fotografia e a decidir revisitar Takehara, algo que os OVAs só haviam mencionado de passagem.
Algumas das garotas são também ligeiramente mais desenvolvidas. Seus pequenos quirks já haviam sido estabelecidos nos OVAs, com a Fuu adorando fotografia, a Kaoru sendo aficionada por aromas, a Norie adorando doces e a Maon falando por assobios.
A princípio, Hitotose não vai muito além disso, o que fica como a minha única maior crítica a essa temporada. Pelo menos nos seus primeiros episódios, as personagens parecem bem mais “tipos” do que personagens de fato, definidas sobretudo por aqueles seus quirks. Felizmente, isso é algo que muda com o andar do anime, e ao final de Hitotse elas já parecem bem mais humanas.
Essa é também a temporada que mais tenta balancear o tempo de tela de cada garota, com todas recebendo pelo menos alguns episódios próprios. A consequência disso, porém, é que a própria Fuu às vezes parece deixada um pouco de lado.
Hitotose dá logo em seu primeiro episódio o contexto para o desejo da Fuu de se tornar mais “agressiva” (talvez “assertiva” fosse uma tradução mais adequada para nós aqui), mas o desenvolvimento da garota nessa temporada é, francamente, bem pequeno. O que não é ruim em si mesmo, mas é interessante como a temporada seguinte focaria justamente nisso.
Tamayura More Aggressive é quase que o completo oposto de Hitotose. Kaoru, Norie e Maon são colocadas de lado pela maior parte da série, que se foca com bem mais intensidade na protagonista, Fuu.
Aqui nós a vemos tentando se tornar mais assertiva, a começar por abrir um clube de fotografia na sua escola, uma recuperação bem legal do desejo que a Fuu expressa logo no primeiro OVA de fazer parte de um. Temos também a introdução da Kanae, que aqui servirá muito como o espelho da Fuu, aprendendo com a sua kouhai a se tornar, ela própria, também mais assertiva.
Tamayura Satsugyou Shashin, a série de quatro filmes que finaliza a série, vem então com uma abordagem mista.
Cada filme é dividido em duas partes muito bem definidas, fazendo com que soem muito mais como um compilado de dois episódios cada do que realmente como filmes (o que fica como a minha maior crítica a eles: o não saber bem aproveitar a própria mídia).
O primeiro e o último filme são focados quase que inteiramente na Fuu, o primeiro introduzindo o novo ano escolar e o último concluindo o arco de desenvolvimento da nossa protagonista. Entre eles, os dois filmes “do meio” dividem seu tempo entre as quatro protagonistas, buscando trazer uma espécie de fechamento definitivo para os arcos de cada uma.
Num todo, são abordagens bem distintas, que talvez revelem intenções também bem distintas. Os quatro OVAs e mesmo Hitotose denotam ainda uma produção que não sabe o quão longe vão conseguir levar essa franquia, enquanto que More Aggressive e, obviamente, os quatro filmes, parecem indicar que os responsáveis já tinham bem mais clado onde queriam chegar.
Claro, não quero também dar a entender que as séries são completamente diferente umas das outras. Tamayura é bastante coeso em sua identidade, dada sobretudo pela sua atmosfera, misto de conforto e melancolia, e pela excelente direção e trilha sonora que criam essa dita atmosfera. Mas não deixa de ser interessante ver a evolução da franquia através dessas diferentes abordagens.
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A Jornada de Quatro Garotas.
Acredito que ninguém achará controverso o argumento de que animes como Tamayura dependem fortemente de seu elenco para “funcionar”. Então, para continuar esta review, eu gostaria de me voltar agora para as nossas quatro protagonistas.
Mas antes de comentar cada uma em separado, acho válido apontar como, estruturalmente, a caracterização e desenvolvimento das quatro seguem caminhos bem similares, ainda que chegando a conclusões bastante distintas. Mantenham isso em mente durante essa rápida análise de cada uma delas.
Vamos começar com a Norie. Quando primeiro a conhecemos, ela bem poderia ser descrita como a genki girl do grupo: a personagem mais energética, hiperativa, extrovertida, tagarela… Mesmo, para ser franco, ao ponto de ser um pouquinho irritante, ao menos nesse começo da história. Mas claro, sua caracterização evolui junto do andar da história.
Ainda nos OVAs nós somos apresentados à paixão da Norie por doces, algo que Hitotose viria a expandir ao ligar essa paixão a uma memória relacionada ao seu irmão mais velho. Nessa temporada também prendemos que ela pode ser bastante infantil, vide suas querelas com a Komachi pela atenção do irmãozinho da Fuu, o Kou. E conhecendo um pouco mais da sua história com a Maon podemos ver o quão profunda é a amizade das duas – Norie sendo a única que entende com perfeição os assobios da amiga.
Dentre as quatro, Norie é também aquela mais certa de seu sonho, determinada desde o começo a se tornar uma patissier. E seu capítulo no segundo filme trabalha justamente em cima dessas características da personagem. Pela primeira vez ela é forçada a tomar ciência da própria impulsividade, e isso pelo seu irmão, justamente aquele que lhe acendeu a chama do sonho em primeiro lugar. Sua conclusão, porém, é um retorno ao status quo, com a reafirmação de seus desejos. Ela irá tão longe quanto conseguir.
Maon nos aparece inicialmente como o completo oposto da Norie. Tímida, reservada, ela fala pouco e se comunica sobretudo por assobios, que são prontamente traduzidos pela amiga. É somente em Hitotose que ela ganha contornos mais distintos.
Se Norie tem plena certeza do caminho que quer seguir na vida, Maon está indecisa devido a um interesse em múltiplas áreas. Por um lado, ela quer herdar a pousada da família, pela qual nutre um profundo carinho. Ao mesmo tempo, ela também quer ser cantora… e atriz… e contadora de histórias… e desenhista… e… é, vocês entenderam.
É uma situação bem curiosa. Quase sempre o que vemos nos animes é ou o personagem que tem plena convicção do caminho que quer seguir ou aquele que está completamente sem rumo e precisa de uma epifania para se descobrir. Maon nos aparece num interessante meio do caminho, onde ela tem tantos interesses que não consegue escolher um só.
Mais uma vez, seu capítulo no terceiro filme trabalha em cima disso. Eu posaria a crítica de que o conflito dela com o pai foi um tanto quanto forçado, mas a conclusão geral ainda é bem orquestrada. No fim, parece que ela dará prioridade mesmo à pousada – sem, porém, desistir de nenhum de seus outros interesses. Quem disse que só podemos ter um único sonho, não é mesmo?
Kaoru primeiro aparece como a mais responsável. A conhecemos justamente quando ela salva a Fuu de cair no riacho. E num geral ela tende a ser a straight man do grupo – sobretudo quando contrastada com sua irmã mais velha, Sayomi.
Ainda nos OVAs nós aprendemos sobre o seu gosto por aromas, que Hitotose depois expande ao fazer da confecção de popuri um hobby seu. E é também aqui que nós descobrimos o quão insegura ela está para com o seu futuro. Porque nesse sentido ela é o oposto da Maon: se aquela tinha interesses demais aos quais gostaria de se dedicar, Kaoru não vê nada que a atraia dessa forma.
Quando primeiro confrontada com esse dilema, a conclusão que o anime dá é que ela não se preocupe com isso por agora. O presente importando mais do que o futuro. Mas claro, quando chegamos aos filmes, e, por consequência, ao seu terceiro ano do ensino médio, essa já não pode mais ser a solução.
Acho a conclusão da Kaoru particularmente interessante porque, a princípio, ela bem poderia soar forçada. Planejadora de casamentos? Sério? Mas basta refletir um momento para ver o quanto isso encaixa com a personagem. Desde o começo nós vemos como ela é a que mais se dedica a planejar e a ajudar os outros, desde auxiliando nos festivais até a organização da exibição das garotas. E claro, no fim, planejar casamentos é apenas uma das possibilidades: o importante para ela é estar a cargo da organização de algo.
Eu tenho sérias dúvidas de que essa conclusão teria sido planejada desde o início, mas ainda há de se elogiar os responsáveis por conseguirem chegar nela: uma que soa, ao mesmo tempo, surpreendente e natural.
E numa nota lateral: acho interessante como tanto a Maon quando a Kaoru acabam seguindo caminhos que nada tem a ver com seus pequenos quirks. Aquela não vira uma “assobiadora” profissional, nem a Kaoru abre uma lojinha de popuri. Algumas vezes nossos hobbies são apenas isso: um hobby. E não há nada de errado com isso. É uma mensagem que não vemos com tanta frequência nos animes, mas que Tamayura entrega muito bem.
Mas claro, o oposto também é verdadeiro. Algumas vezes nossos hobbies se tornam, sim, uma profissão. Já vimos isso com a Norie. Mas falemos agora da única que falta dentre as quatro principais.
Quando primeiro conhecemos a Fuu ela bem poderia ser descrita como a airhead do grupo, a garota avoada que se maravilha com o mundo ao seu redor. Tímida, ela gagueja ao falar com estranhos. E tem na fotografia o seu grande hobby: um que ela herdou de seu falecido pai.
Hitotose fortalecerá as bases da personagem. No primeiro episódio, temos uma melhor noção do quanto a morte do pai a afetou. Enquanto sua amiga Chihiro chora só de tocar no assunto, Fuu não parece conseguir expressar qualquer reação. É na fotografia, porém, que ela irá encontrar o caminho para realmente superar o luto da perda. Seu retorno a Takehara sendo um primeiro passo que, pensando em retrospecto, só poderia mesmo terminar quando o círculo se fechasse.
Nessa primeira temporada nós também aprendemos do desejo da Fuu de se tornar mais “agressiva”, mais assertiva, mais decidida. Mas Hitotose não trará isso, não ainda. Esse papel fica com More Aggressive, que, como o próprio subtítulo já indica, se focará quase que inteiramente no desenvolvimento da Fuu. Um que o espectador talvez mal note enquanto ele ocorre, mas que se torna mais que evidente quando você compara como a personagem começou com o como ela terminou.
Aqui também aprendemos que a Fuu, longe de ser uma pura airhead, tende a pensar bastante nas decisões que toma – especialmente aquelas mais importantes. Perdida em pensamento, ela demora até decidir abrir o clube de fotografia. Um precedente importante para como os filmes irão trabalhar a sua demora em decidir o caminho que deseja seguir.
Quando o primeiro destes filmes começa, Fuu quase parece outra pessoa – palavra-chave aqui sendo “quase”. Divulgar o clube de fotografia em frente a plateia da sua escola não é mais nenhum grande desafio, mas ela ainda é aquela garota hora distraída, hora introvertida, que se perde no cenário à sua volta tanto quanto nos seus dilemas e dúvidas pessoais.
Agora, para falarmos da conclusão da Fuu, é importante termos em mente as duas pessoas que a levaram para a fotografia. A primeira delas foi o seu pai. Já falecido, do qual ela herdou uma simples câmera de filme, ele bem pode ser entendido como uma representação do passado. Já a segunda, Shihomi Riho, vem na linha oposta. Fotógrafa profissional, dotada dos mais modernos equipamentos, bem podemos interpretá-la como uma representação do futuro.
O arco da Fuu é, acredito eu, um de superação. Sua avó lindamente coloca em uma dada cena: “uma dor profunda o bastante tem o poder de parar o tempo”. A perda do pai fez o tempo parar para a Fuu, algo que ela mesma não percebeu ainda. Seu retorno a Takehara e os três anos que ali passou sendo a sua forma de fazer o tempo voltar a andar.
Justamente por isso, Fuu precisa deixar Takehara. É o que quero dizer quando apontei que a única conclusão possível é o fechar do círculo. O passado precisa ficar no passado. Sempre memória. Sempre conosco, de alguma forma. Mas nunca nos prendendo. Nunca nos impedindo de seguir adiante. E é essa a lição final da Fuu, que completa seu arco decidindo se mudar para Tóquio, indo estudar fotografia a fim de seguir os passos da Shihomi.
É por isso, aliás, que a câmera de seu pai quebra. Ela cumpriu sua função. E agora, ele pode finalmente descansar, ciente de que sua garota está pronta para seguir em frente.
Mas antes de nós seguirmos em frente, queria terminar essa seção com apenas algumas rápidas palavras sobre o elenco secundário de Tamayura. Isso porque este é, para todos os efeitos, até que muito bem trabalhado.
O exemplo maior certamente deve ser a Kaede, que, como eu mencionei mais acima, se torna meio que um espelho da Fuu durante a segunda temporada. Igualmente tímida, igualmente ansiosa, mas sem a “agressividade” da protagonista – uma que ela terá de desenvolver, nem que apenas um pouquinho, durante aquela temporada.
Diga-se de passagem, é bem interessante como Tamayura trabalha essas “rimas” de personalidades. Há diversas personagens aqui que têm traços similares. Norie e Tomo sendo bastante energéticas e extrovertidas. Fuu, Maon e Kaede sendo as mais tímidas e reservadas. Chihiro e Suzune sendo as choronas. As próprias personagens até chegam a comentar nas similaridades de certas personalidades. Ainda assim, nenhuma parece pura cópia da outra, e se são parecidas em algo também são todas diferentes em algum outro aspecto. O que serve de demonstração do quão bem caracterizadas são as personagens desse anime.
Outras que ainda merecem menção, dado desenvolvido e caracterização que possuem ao longo da série, são a Chihiro e – surpreendentemente, até – a mãe da Fuu. Não vou detalhar o porque de destacar as duas – esta review já está longa o bastante como está -, mas ficam como menções que, a meu ver, não poderiam faltar.
Finalmente, cabe um breve parágrafo para falar um pouco do pai da Fuu, que é lindamente caracterizado apenas através das memórias daqueles com os quais teve contato. Uma forma bastante tocante de caracterização, que termina por formas um personagem não menos fascinante do que qualquer outro do elenco.
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Luto. Mudança. Fotografia.
Tamayura é um caso bastante peculiar. Via da regra, animes slice of life moe não costumam ser exatamente pesados em temas. Isso não quer dizer que não tenham nenhum, é óbvio, só que sua força maior costuma repousar em outro lugar: na comédia, nas personagens, na atmosfera…
E não me entendam mal, tudo isso é também bem forte aqui. Mas Tamayura é também uma série que aborda uma série de temas que vale a pena comentarmos.
O primeiro destes, claro, é o luto. Não vou detalhar a fundo este, pois seria apenas repetitivo, dado o quão profundamente este tema está ligado ao desenvolvimento da Fuu. Mas cabe aqui reconhecermos o quão pesado ele é, algo nada comum em animes do gênero.
É graças a ele que Tamayura consegue manter uma atmosfera única, mescla de, como já mencionei, conforto e melancolia. Os momentos de comédia leve e interações divertidas entre as personagens sendo entrecortados tanto pela triste realidade que é a perda do pai da Fuu quanto pela agridoce memória da sua presença. Um balanço que poderia facilmente pender demais para um lado ou para o outro, mas que o anime consegue gerir com maestria.
Outros temas já são mais comuns ao gênero do anime. Tamayura é um slice of life, uma história sobre o dia a dia de suas personagens. E é também um iyashikei, histórias voltadas a “curar” emocionalmente o espectador. Não surpreende, portanto, que encontremos aqui tanto o seu típico comming of age, com cada personagem tendo de considerar o seu futuro e o caminho que deseja seguir, quanto o conceito de mono no aware, a beleza que surge da impermanência, que faz de um momento algo especial justamente por este ser apenas um momento.
Arvores de cerejeira (sakura) abundam aqui, símbolo máximo do mono no aware, cuja beleza exuberante de suas flores duram por apenas um breve período de tempo. E, no fim, não seria assim também a juventude?
Se ligando a ambos os temas acima mencionados – o luto e o mono no aware -, temos a questão da memória e a da mudança. Uma que aparece já no primeiro OVA, quando Fuu reflete sobre como a cidade que ela conhecia tão bem das suas lembranças está agora repleta de coisas novas.
Tamayura é uma série que olha bastante para o passado, e para a relação do passado com o presente. Mas ele o faz sempre pensando no futuro. Não devemos esquecer o que se passou. Momentos importantes e memórias preciosas. Mas também não podemos nos prender ao passado. O que passou, passou. A mudança é bem vinda. E o seguir em frente, necessário.
Finalmente, temos a fotografia, que serve aqui a dois propósitos bastante distintos. Ambos, porém, inerentes à própria mídia: a fotografia como memória e a fotografia como arte.
O primeiro é também o mais curioso. Através da fotografia, um instante ganha materialidade. Um momento é preservado eternamente. Tal como a Fuu coloca logo no monólogo introdutório do primeiro OVA, a foto tem o poder de “tornar qualquer coisa em algo especial no momento em que ela é tirada”. Ao mesmo tempo, e ironicamente, esta é talvez a expressão da fotografia que será menos tangível para nós.
É engraçado. Vivemos numa época onde nunca foi tão fácil tirar uma foto. Basta tirar o celular do bolso e qualquer momento pode ser imortalizado. Mas pode mesmo? Não perdemos algo nessa passagem do analógico para o digital?
Fotos, hoje, são bem mais imateriais. Dados no seu celular, ou quando muito em alguma rede social na qual você a publicou. Foram-se os tempos dos álbuns de fotos. Não precisamos mais esperar pela revelação das imagens. Se não gostou da foto que tirou, basta apagar e tirar uma nova. Pequenos erros podendo facilmente ser corrigidos.
Ainda assim, não posso deixar de notar… Pensando na minha família, acho seguro afirmar que eu tenho bem mais fotos de quando era pequeno do que o meu irmão tem. Quando eu nasci, as câmeras ainda eram de filme. Quando ele nasceu, elas já eram digitais. Não posso deixar de pensar que a perda da materialidade tirou um pouco da mística das fotos. É irônico, mas: o conveniente raramente parece especial.
Talvez seja ai que entram as fotos como uma forma de arte. De repositórios da memória, elas passam agora a ferramentas dos artistas. Na segunda parte de seu monólogo, Fuu remarca ainda outra característica das fotos: a capacidade de “ligar os corações daquele que tem a foto tirada e daquele que a tirou”.
Como arte, a fotografia é também a expressão do artista. As fotos da Fuu são diferentes daquelas da Shihomi, que são diferentes daquelas da Kaede ou da Komachi. No frame, estão refletidos seus interesses, suas técnicas, seus valores… o “coração” de cada uma.
E é curioso notar como esses dois aspectos da fotografia se ligam às duas pessoas que fizeram a Fuu gostar delas. Seu pai é o aspecto da memória. Shihomi, o aspecto da arte. E que aquele represente o passado e esta o futuro… Bom, é algo a se pensar.
Claro, no fim o que Tamayura advoga é uma coexistência de ambos. É uma questão de intenção. E do momento. No quarto da Fuu no apartamento da Shihomi, podemos ver tanto a última foto que ela tirou com a câmera de seu pai quando a primeira foto que tirou com sua nova câmera. Memórias preciosas não apenas de suas amigas e da cidade de Takehara, mas também do seu crescimento como pessoa.
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Tamayura e Aria.
Normalmente eu não gosto de comparar animes nessas minhas reviews, e o motivo é bastante simples: se você não assistiu o anime ao qual eu estiver comparando, então a comparação em si perde praticamente todo o seu valor.
Ainda assim, eu disse logo no começo deste artigo que Tamayura é uma espécie de “sucessor espiritual” de Aria, e acredito que isso demanda certa clarificação. Então antes de encerrarmos de vez essa review, permitam-me alguns parágrafos para falar um pouco da conexão entre essas duas franquias.
Ambas as séries foram produzidas pelo mesmo estúdio, Hal Film Maker, e possuem o mesmo diretor, Jun’ichi Satou. Mas enquanto Aria é uma adaptação de mangá, o original tendo sido escrito e desenhado por Kozue Amano, Tamayura é uma série original do próprio Satou (tem um mangá, mas ele saiu em paralelo com o anime).
Ambas são iyashikei e slice of life, seguindo o crescimento de um elenco de personagens femininas, e nisso transmitem muito das mesmas ideias. Questões como o mono no aware, por exemplo, e a ideia de mudança com o passar do tempo. Ambas até tem seus gatos de aparência questionável! Talvez uma das maiores marcas do Jun’ichi Satou.
Claro, nada disso é exclusivo dessas duas séries, mas dado que o primeiro OVA de Tamayura saiu, grosso modo, dois anos após o fim da última temporada de Aria, não seria estranho pensar que Satou provavelmente estava tentando reproduzir seu último grande sucesso. Bom, se bem que colocar a coisa nesses termos seria também um pouco injusto.
Tamayura não é uma cópia de Aria, nem de longe. Ambos partilham muitos temas e ideias, mas há também enormes diferenças entre as séries. Em particular, a atmosfera de Tamayura é bem mais “pesada”, bem mais agridoce, o que dá ao anime uma identidade bastante única.
Sob muitos aspectos, Tamayura pode mesmo ser visto como uma evolução de Aria. Sua direção é absolutamente fenomenal, e o seu uso da trilha sonora, sobretudo de insert songs, fica entre um dos melhores que se pode encontrar em seu gênero. Satou claramente aprendeu bastante com a sua experiência com Aria, e isso transparece com clareza aqui.
Curiosamente, no mesmo ano em que saiu o último filme de Tamayura, Satou viria a dirigir Amanchu! Outro iyashikei slice of life, agora adaptando um outro mangá de Kozue Amano. E um no qual a protagonista, Teko, está sempre tirando fotos com o seu celular. E é claro que tem um gato estranho aqui também…
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Por fim:
Eu sei que digo isso sobre praticamente todo anime que resenho, mas: Tamayura foi uma experiência única. Uma série fantástica, que adorei do começo ao final, e uma que não poderia recomendar o bastante. Se você por um acaso leu tudo isso sem ter visto o anime ainda, reforço ainda outra vez a recomendação. E se já o fez, espero que tenha gostado – dele, e desta review.
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1) Tamayura, 1º OVA
2) Tamayura, 1º OVA
3) Tamayura Hitotose, episódio 1
4) Tamayura More Aggressive, episódio 1
5) Tamayura Sotsugyou Shashin Part 1 – Kizashi
6) Tamayura, 1º OVA
7) Tamayura, 1º OVA
8) Tamayura, 1º OVA
9) Tamayura Sotsugyou Shashin Part 3 – Akogare
10) Tamayura, 1º OVA
11) Tamayura More Aggressive, episódio 3
12) Tamayura Sotsugyou Shashin Part 4 – Ashita
13) Tamayura More Aggressive, episódio 3
14) Tamayura Hitotose, episódio 7
15) Tamayura More Aggressive, episódio 4
16) Tamayura, 1º OVA
17) Tamayura, 2º OVA
18) Tamayura Sotsugyou Shashin Parte 4 – Ashita
19) Tamayura, 1º OVA
20) Tamayura Sotsugyou Shashin Parte 4 – Ashita
Finalmente a review que tanto ansiei! Apesar do tamanho, minha leitura fluiu maravilhosamente, conforme relembrava os acontecimentos da série (com lágrimas nos olhos) e também aprendia algumas coisinhas, com suas ótimas interpretações dos significados das relações entre os personagens e as metáforas fotográficas.
Também gostei da comparação com Aria e, enquanto já o tinha comparado com o mesmo, não cheguei a ponderar sobre o que Tamayura narrativamente evoluiu em comparação ao seu predecessor espiritual, mas pensando agora, bem vejo alguns temas, principalmente em relação ao crescimento individual que leva à separação, como um que teve maior força nesta obra. Contudo, ainda seguindo a ideia de não tentar comparar para desqualificar um dos lados, bem digo que ambas as séries possuem suas qualidades únicas e com certeza devem ser apreciadas ao seu modo (o comparativo, acredito eu, DEVE ficar apenas como uma reflexão curiosa).
Enfim, parabéns pela excelente review e agradeço por ter sido um dos que me motivaram a conhecer essa maravilhosa obra!
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