Uma História Sobre Bonecas Mecânicas
Se eu fosse traçar paralelos entre os episódios de Kino no Tabi, apontando quais são similares a quais, teria de dizer que este décimo me lembra um pouco do oitavo, ainda que aqui sem a inversão de perspectiva que ocorre naquele. São ambas histórias ligeiramente mais tradicionais, que se focam menos num país e mais em pessoas em específico.
O décimo também se destaca por ser um episódio mais atmosférico, e nesse aspecto se assemelha bastante ao último do anime. Há durante todo o episódio uma sensação de que algo ali está errado, uma que é ainda reforçada pela direção (visual e de som, diga-se de passagem). E não demora até termos o pay off desse build up.
É um episódio mais leve em temas, por mais que estes ainda estejam aqui, mas que ainda cativa a seu próprio modo. Sendo assim, comecemos de uma vez a sua análise.
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Atmosfera
Comentando Kino no Tabi episódio a episódio, eu percebo que acabo sempre me focando muito mais nos temas de cada história. Um reflexo tanto dos meus interesses para com a ficção de consumo como também do fato de que eu ainda entendo bem pouco da teoria por trás de coisas como direção, animação, design de som e por ai vai. Claro, ao longo dessa série de artigos houve instâncias nas quais comentei esses elementos, mas nunca como o foco da análise.
Este episódio, porém, me parece um bom momento para focarmos mais nessas questões. Porque o episódio em si é muito mais forma do que conteúdo, exatamente. Ele tem, sim, alguns temas que aborda, mas estes vêm somente mais para perto do final, com o restante do episódio sendo dedicado sobretudo à criação de uma certa atmosfera e do mistério sobre o que estaria realmente acontecendo naquela casa.
É algo que já começa com o primeiro encontro da Kino com a senhora, na floresta. A própria senhora sendo um elemento destoante naquele cenário, mais ainda quando ela diz que não há um país do perto (e isso quando a Kino havia sido informada de que deveria haver um naquela direção). E quando ela se identifica como a empregada de uma família, a câmera se aproxima do seu rosto em um nível que cria no espectador certo desconforto – truque o episódio usa ainda algumas outras vezes.
A casa é também um elemento destoante. Sua presença longe de qualquer país e o fato de parecer até ideal demais. A própria senhora diz ser um bom lugar para uma família, e o fato da personagem chamar atenção para a coisa só faz tudo aquilo soar estranhamente artificial.
A senhora, porém, levanta suspeitas pelo exato oposto. Quando a Kino encontra o porão, e ali vê as várias peças de robôs nunca terminados, a senhora lhe diz que foi ali que ela foi feita. Mas em meio a toda aquela artificialidade que são os robôs (ou “bonecos mecânicos”, como o anime chama) a senhora parece genuína demais. Humana demais. Algo que o próprio Hermes aponta na primeira noite em que passam ali, perguntando à Kino se ela realmente acreditava que poderia haver um robô tão realista.
A família age muito mais como robôs, e o espectador não demora a fazer a conexão entre as coisas. Ainda assim, é interessante como o anime comunica isso até antes da revelação final.
Temos o fato da família não comer, por exemplo. Ou o fato de não saberem como agir quando pegos em contradição (Kino pergunta se havia um país por perto e respondem que não; então ela pergunta onde os dois adultos trabalhavam e eles parecem nem processar a pergunta). Fora que seus movimentos são sempre estranhamente sincronizados, algo que fica evidente sobretudo quando da cena em que a senhora cai no chão, que eles aparecem no topo das escadas.
O som é também um elemento importante aqui. Diversas vezes temos um efeito sonoro difícil de explicar (um “plin” que não consigo dizer qual o instrumento usado, se um sino, triângulo, teclado ou o que), mas que serve sobretudo para chamar a atenção do espectador para uma dada cena. Notem que ele toca múltiplas vezes durante o primeiro jantar da Kino com a família, e também quando este visita as ruínas no lago junto da senhora.
São todos elementos que se acumulam uns sobre os outros, também uns mais sutis que os outros, e que no conjunto criam essa sensação de que alguma coisa ali está fora do lugar. Que a história que nos foi contada não é realmente a verdade.
Ao mesmo tempo, há uma curiosa sensação de segurança aqui. Em momento algum sentimos que a vida da Kino está em risco, ou algo do tipo, ou mesmo que ela está sendo enganada por algum motivo nefasto. Ela pode ir embora a qualquer momento, e enquanto está ali consegue aproveitar uma boa comida e uma cama macia, algo que a personagem muito aprecia.
Mas claro, toda essa construção precisaria resultar em algo, e até o final o episódio explica bem cada mistério que levanta. E nisso nós podemos entrar nos temas que essa história aborda.
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O Desejo de Ser Útil
É curioso que, no seu leito de morte, a senhora pergunte à família se havia conseguido lhes ser útil. Vendo depois como foi o seu passado, podemos inferir que este era mesmo um traço da sua personalidade.
A mulher era uma inventora, que criou os três robôs. A motivação dela, contudo, era a esperança de que eles pudessem livrar as pessoas do trabalho e, com isso, amenizar o conflito étnico que ocorria no seu país. Independente do realismo dessa situação toda, ou de se as coisas realmente terminariam como ela gostaria que terminassem caso seus robôs fossem produzidos em massa, notamos já aqui o desejo de fazer algo pelos outros.
Quando ela perde a sua família, ela sofre um claro colapso mental na hora, agravado depois por ser soterrada pelos destroços do prédio destruído. Ela acredita ser uma robô, e nisso age de acordo, dedicando-se inteiramente à sua nova “família”. E os robôs, claro, assumem sem hesitar o seu novo papel.
Acho que há aqui algum questionamento sobre o que diferencia uma pessoa de um robô, com as distinções sendo bastante aparentes. Como disse mais acima, há na senhora algo de genuíno e de natural, que perfaz do seu movimento à sua forma de falar às emoções que demonstra, que simplesmente não está presente nos três robôs, que continuamente nos soam como demasiado artificiais.
Mas que a senhora seja motivada por um desejo de ser útil a alguém de certa forma a aproxima um pouco dos robôs que criou. Como vemos, estes precisam de algum tipo de propósito, alguma missão, papel ou tarefa que possam cumprir. Quando a Kino se recusa a dar um a eles, os três se atiram no mar, com o episódio terminando com eles afundando.
Que seria, então, aquilo que separa pessoas e robôs?
Algo interessante é que após a Kino recusar que os três robôs a acompanhassem, a mulher pergunta se não era difícil para os humanos viverem sozinhos ou sem serem úteis a alguém. E é natural que ela pense assim, dado que por cinquenta anos seu único referencial de um humano foi a senhora que os criou. A resposta da Kino, porém, é aquilo à que eu gostaria de chamar a atenção: “depende da pessoa”.
É uma resposta curta, e bem dentro do que esperaríamos da personagem. No sétimo episódio ela inclusive chegou a recusar uma oferta semelhante, quando Shizu perguntou se gostaria que fossem juntos ao próximo país, após deixarem o coliseu. Kino está confortável da forma que está, viajando sozinha, acompanhada apenas do Hermes. No contexto do episódio, porém, esta bem pode ser a grande diferença entre pessoas e robôs.
Como disse antes, os três robôs são bastante sincronizados. E que decidam pular no lago ao final, efetivamente uma forma de suicídio para eles, denota também uma homogeneidade na forma de pensar e na de ver o mundo. Pessoas, porém, são sempre diferentes umas das outras. Uma realidade que por vezes assume facetas desastrosas, como o conflito que levou ao fim do país da senhora, mas também uma que Kino reafirma nessa sua última fala.
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E Agora: Todo o Resto
E finalizamos com a costumeira seção onde deixo tudo que não consegui encaixar no texto acima. Curtinha, desta vez, e sem spoilers, então boa leitura.
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Eu realmente gosto que a motivação da Kino pra querer passar mais uma noite na casa seja o jantar. É o tipo de coisa que humaniza bastante a personagem.
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Quando a senhora morre, temos que o sol forte entra pela janela, embranquecendo todo o quarto. Já vimos o recurso ser usado várias vezes para representar perigo, mas esta é a primeira na qual ele aparece após uma tragédia. Primeira, mas não a última.
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Acho bem curioso que a senhora desejasse usar dos robôs para livrar as pessoas do trabalho, se mais nada no mínimo pelo fato do trabalho ser um tema recorrente no anime.
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