Nossa conversa semanal sobre os animes da temporada.
Olá a todos, e bem vindos a mais um Café com Anime \o/ E como de costume, mais uma vez se juntam a mim o Fábio “Mexicano”, do Anime 21, o Vinicius Marino, do Finisgeekis, e o Gato de Ulthar, do Dissidência Pop, desta vez para discutirmos essa mais nova adaptação do clássico de Osamu Tezuka, Dororo.
Antes de irmos parara a conversa, porém, não deixem também de conferir os demais blogs! No Anime 21, teremos nossas conversas sobre Carole & Tuesday. E no Dissidência Pop, nossas discussões sobre Sarazanmai. Não percam!
E sem mais delongas, vamos então à conversa. Uma boa leitura /o/
Diego:
E cá estamos nós! Os dois episódios finais de Dororo. Foi uma jornada e tanto até aqui, e apesar de talvez um ou outro solavanco ao longo do caminho, num geral foi um anime que eu não me arrependo de ter escolhido para nossas conversas!
Mas ok, vamos direto ao que interessa Nesta discussão nós falaremos dos dois episódio finais, mas vamos em ordem, né! Começando com o episódio 23, que vem muito como uma culminação de tudo que o anime vem construindo até esse ponto. Adoro como os personagens estão convergindo todos para um mesmo local (o castelo do Daigo, apropriadamente, um quase que literal retorno ao início de tudo). Todos menos, curiosamente, o próprio Daigo.
Mas tematicamente também foi um episódio bem curioso, com toda aquela conversa de como o ser humano está sempre entre o demoníaco e o buda. E a ação não desapontou, em! Não apenas a luta do Hyakkimaru e aquele cavalo em chamas contra toda a party do Tahomaru (com direito a uma das mortes mais brutais do anime!), como ainda a luta dos dois irmãos mais para o fim do episódio.
Digam ai vocês, o que acharam desse “começo do fim”?
Fábio “Mexicano”:
Foi um episódio bastante expositivo, mas expôs algumas respostas para perguntas que já tínhamos há muito tempo, elementos centrais da história. O principal, vocês sabem qual é: é certo ou é errado o Hyakkimaru querer recuperar seu corpo, e, inversamente, é certo ou errado o povo de Daigo querer sacrificar Hyakkimaru para seu próprio benefício?
Eis que Dororo responde mudando os termos do dilema. Não é questão de ser certo ou errado. É só quê, como formulou a mãe do protagonista, a fortuna construída sobre o sacrifício de outrém é frágil. Se é frágil, todas essas perguntas perdem o sentido. O que é frágil cedo ou tarde desmorona. O esforço de Tahoumaru é o de um tolo tentando segurar de pé um castelo de cartas que o vento já assoprou para longe as fundações. É certo ou errado? Bom, ele não deveria depender de um castelo de cartas em primeiro lugar.
E teve mais, claro, mas acho que isso pra começar está bom
Vinicius Marino:
Ok, sei que temos muitas coisas sérias a comentar, mas PQP, que cenas de ação foram essa! Acho que desde o começo do anime (leia-se, no primeiro episódio), não me impressionava tanto com as batalhas.
Dororo podia ter me dado só as lutas entre Hyakkimaru e o grupo de Tahomaru, subido créditos, e eu sairia satisfeito.
Sobre o cerne intelectual do episódio, acho que a questão é essa mesma que o Fábio colocou.
Sim, o plano diabólico do Daigo residia em sacrificar Hyakkimaru a sua barganha. E, bem, se ele tivesse ficado quietinho e aceitado sua vida miserável talvez a artimanha até funcionasse – por um tempo, ao menos.
É muito fácil prometer paraísos quando quem paga as contas é outra pessoa. Extrapolando o anime, vale apontar que esta é uma questão central da política mesmo nos dias de hoje. Muitas das obrigações cívicas que mantém a sociedade de pé, sobretudo em tempos de crise — alistamento militar obrigatório, medidas de austeridade econômica, violações dos direitos civis em casos de emergência – dependem do sacrifício de alguns de seus membros.
Esses dias mesmo estava lendo um artigo que propunha uma mobilização emergencial equivalente à da Segunda Guerra Mundial para salvar o mundo da catástrofe climática. Os custos seriam brutais, e não tenho dúvidas que levaria muitos países a se sentirem como “Hyakkimarus”. Hoje em dia, Estados já esperneiam por concessões muito menores.
Justamente por isso, não acho que essas “perguntas” estão nem de longe resolvidas. Sim, tudo o que é frágil desmorona, mas talvez a sociedade humana como um todo seja frágil e esteja fadada a desmoronar.
A própria Dororo parece admitir isso. Ao seu questionada sobre o que fazer depois de virar a mesa, ela diz apenas “isso a gente resolve depois”.
Fábio “Mexicano”:
Li esse artigo também. A ideia é sempre legal no papel, até considerarmos que qualquer mudança radical dessas vai sacrificar pessoas, queiramos ou não. Por outro lado, se o futuro for mesmo catastrófico como insinuam, o que mais nos resta fazer?
Acho que essa é exatamente a situação do Hyakkimaru. Ferrado se sim, ferrado se não. E talvez Dororo tenha finalmente entendido isso, graças à mãe do Hyakkimaru, e por isso tenha decidido deixar para depois o que vem depois.
Vinicius Marino:
É curioso nesse sentido que em muitas culturas aquilo que faz de um líder um líder é justamente um “pacto”, se não com um demônio, pelo menos com uma entidade divina/sobrenatural de alguma espécie.
Os imperadores do Japão se dizem descendentes de Amaterasu. Os plantagenetas, reis da Inglaterra, se diziam descendentes de uma fada chamada Melusina. Vários clãs da Irlanda se diziam descendentes de deuses ou semi-deuses, e seu rito de inauguração era um casamento ritual entre o rei e uma deusa local da soberania.
O “direito divino” é uma manifestação abraâmica. Porém, se o Deus da Bíblia é teoricamente sempre bom, deuses pagãos são caprichosos e às vezes ferram mortais por motivos frívolos.
É como se as pessoas já soubessem, desde os primórdios, que todo contrato social é inerentemente frágil. E o folclore (e a arte) refletem esses medos, das bruxas de Macbeth aos demônios de Dororo.
Gato de Ulthar:
Devo concordar com todo mundo, o domínio de Daigo foi levantado não por sua capacidade de governante, mas com um acordo para lá de suspeito com entidades demoníacas. Nunca dá certo fazer um pacto com o capiroto né? Fausto que o diga! Cedo ou tarde se cobra um preço.
Mais do que tudo isso, é uma possibilidade do povo tentar colocar o seu destino nas suas próprias mãos, sem depender de eventos miraculosos.
E creio que o anime resolveu a questão de modo efetivo, Tahoumaru mostrou que até o seu impulso em proteger o povo entrou no mesmo caminho do pai, fazendo também o seu pacto demoníaco.
Não restou opção mesmo ao Hyakkimaru.
E devo fazer eco, que cenas de ação.
O rapidash acabou com a party do Tahoumaru mas acabou morrendo
Fábio “Mexicano”:
A desgraça é que nem sempre é possível, não é? Um exemplo é o artigo que o Vinicius publicou. Se já tivermos passado do ponto de não retorno nas mudanças climáticas, não teremos como superar as dificuldades vindouras sem sacrifícios, em maior ou menor grau. E quando falamos em “sacrifícios” em escala global não podemos ser levianos: estamos falando de muita gente que vai sofrer sem ter escolhido por isso. Mas se não agirmos seria pior ainda!
Em nível individual, isso encontra paralelo no Budismo da Terra Pura Verdadeira, popular durante o Período Sengoku e que se mostra influente em Dororo, que prega que o mundo está em um estado tão terrível que é impossível atingir a iluminação (ou qualquer que seja o termo adequado em budismo para isso). Um indivíduo só pode ter esperança de, fazendo o seu melhor, reencarnar na Terra Pura, onde, aí sim, ele conseguirá, sendo guiado por entidades espirituais budistas, atingir a iluminação.
Vinicius Marino:
E para piorar ainda mais a desgraça, nós não conhecemos o futuro. Previsões não são profecias. Muitas vezes, elas erram. Muitas vezes, elas são infladas ou subestimadas por aqueles que as propõem.
Os que defendem “sacrifícios” sempre dizem que o fim justifica os meios. Só que, às vezes, a realidade se prova menos catastrófica, e aqueles que se sacrificaram descobrem que sofreram à toa. Outras vezes, ela é mais catastrófica do que previam, e todo o sacrifício se prova em vão.
Em todo caso, o fundamental é ter “skin in the game”, como diria Nassim Taleb. É muito fácil dizer que milhares precisam morrer para salvar milhões, quando você não está entre os milhares que serão sacrificados. Acho que isso, mais do que a truculência em si, é a grande vilania de Daigo e dos samurais em Dororo.
Diego:
Eu lembro que quando o anime ainda estava em seus primeiros episódios, algumas pessoas apontaram como era de fato conveniente que o “sacrifício” do Daigo foi o de seu filho. Ele próprio, verdade seja dita, não perdeu nada. É como o Vinicius disse: é fácil exigir o sacrifício de outros, bem mais difícil é se voluntariar.
Mas a questão do sacrifício de lado, que acharam da discussão entre a mãe do Hyakkimaru, o velho e a Dororo? A mãe coloca que o ser humano está sempre a busca incessante pela força, assim se tornando um demônio, e a busca da iluminação budista, que o torna apático e complacente. O velho diz que é justamente isso que nos torna humanos, mas acho interessante que Dororo rejeita essa visão. Ela diz que é possível se tornar forte e manter a sua humanidade, o que inclusive soa como uma recusa ao caminho da complacência budista.
Fábio “Mexicano”:
Acho que Dororo apenas rejeitou a falácia da ladeira escorregadia da mãe do Hyakkimaru. Da forma como ela formulou, qualquer busca pela força conduziria inexoravelmente à desumanização. Em sua posição, não é difícil entender porque ela pense assim.
Assim, ou as palavras fazem sentido e Dororo concordou com o monge, focando no caso particular do Hyakkimaru e dando sua explicação do quê o salvaria de se tornar um demônio, ou Dororo não entendeu o que o monge falou
Diego:
Não acho que tenha concordado. O monge parece ver a condição humana como um constante pendular entre os dois extremos, nunca se comprometendo com nenhum deles de verdade, sob risco de perder a própria humanidade. Dororo parece crer que podemos nos comprometer com o caminho da força e ainda assim nos manter humanos. Ou, no mínimo, ela quer acreditar nisso, pois do contrário já seria tarde demais para o Hyakkimaru.
Fábio “Mexicano”:
Eu acho que o monge generalizou, você pode escolher o caminho da força, o caminho da conformação, ou escolher caminho nenhum e se deixar levar ou tomar decisões ad hoc, enquanto Dororo se concentrou no Hyakkimaru, que obviamente escolheu o caminho da força.
Talvez o monge ache que qualquer um desses é igualmente humano e são todos moralmente equivalentes a princípio, mas Dororo acredite que escolher o caminho da força seja moralmente superior?
Gato de Ulthar:
Não acho que Dororo pense que o caminho da força e superior, no máximo ele acredita que quem possua força ou poder deve usar isso para o bem. O pai dela, mesmo com os ideais meio capengas, era um homem forte que lutava pela justiça. Dororo tem nas mãos o poder do “dinheiro”, embora ainda não saiba bem no que empregar esse poder. O que a Doro mais despreza, ao meu ver, é quem sucumbe aos próprios desejos egoístas, seja alguém poderoso ou não.
Vinicius Marino:
Ok, precisei assistir de novo esse pedaço, pois ele traz várias ideias em uma.
O velho começa dizendo que buscar a “força” – i.e. o poder de tomar as rédeas da sua própria condição – pode levar a uma corrupção. E que o caminho da apatia é uma saída, caso ele não queira correr o risco. Em qualquer um dos casos, ele acredita que o indivíduo perderá sua humanidade. Em nenhum momento ele diz que são os dois únicos caminhos. Como o Fábio disse, nada o impede de tomar qualquer outra decisão entre as duas.
De onde a mãe do Hyakkimaru parece dizer que estamos fadados a sofrer agindo entre esses dois fantasmas: a desumanização pela apatia e pelo excesso de ação. Ao que o velho responde que talvez seja isso que nos torna humanos.
Então Dororo, do alto da sua sabedoria milenar, diz que “Você não deixa de ser humano só por ficar forte”, pois “o que importa é o coração”.
Se você tiver o coração bom, o poder não te corromperá. Um sujeito forte jamais sentirá a vontade de oprimir o fraco. Um líder jamais sofrerá, atiçado pela impunidade, a tentação de explorar seu povo. Basta ter “bom coração”.
A evidência para essa pérola de sabedoria são duas: a) “Você só vai saber se você tentar” e b) “Eu vi então eu sei”. O que é… uma baboseira tremenda, mas exatamente o tipo de baboseira que espero de uma criança.
Então vou na outra hipótese do Fábio: ele não entendeu o que o monge quis dizer. Pelo menos, não suas implicações.
Diego:
Bom… Vamos então passar para o último episódio? (reparem nas minhas incríveis habilidades de transição!
)
Dororo finalmente acabou. E eu preciso dizer: que final… ok. Não foi ruim, de maneira nenhuma, mas eu também não posso dizer que achei bom. Pareceu um tanto quanto apressado, sobretudo em como trabalhou alguns personagens e situações.
O Tahomaru me pareceu desistir muito fácil ao final. O velho clichê de “perdeu a luta, portanto reconhece que está errado” não me pareceu consistente com a persistência do personagem em sua visão até aquele momento. É como se os roteiristas tivessem criado uma armadilha para si: o Hyakkimaru não podia matá-lo, não depois de decidir que seu irmão era igual a ele, então a única outra forma de o Hyakkimaru reaver seus olhos foi essa.
A morte do Jukai e da mãe do Hyakkimaru também me pareceu meio mal feita. Eles podiam muito bem ter escapado daquele fogo. Claro, implícito nisso está que não queriam escapar. Jukai é um que queria morrer há muito tempo, e consigo imaginar a mãe do Hyakkimaru tendo um sentimento semelhante. Ainda assim, que ambos escolham logo aquele momento para morrer me soou muito como tragédia só pela tragédia.
E por últimos temos a partida do Hyakkimaru. Enquanto ela é fiel ao mangá (por sinal, tanto nele quanto no anime de 69 ele termina de fato separado da Dororo), eu sinto que aqui cabia bem mais que os dois ficassem juntos. Dito isso, terminar assim pega bem no fato de que o Hyakkimaru estava dependendo demais da Dororo como a única pessoa ao seu lado, então que ele parta sozinho é também uma demonstração de crescimento do personagem. Sei lá, fico em cima do muro nessa.
Mas e vocês, o que acharam da conclusão de Dororo?
Fábio “Mexicano”:
O que você esperava que o Tahoumaru fizesse ali, Diego, no castelo em chamas, com a espada partida e subjugado pelo oponente que jurou derrotar? Não, esquece essa pergunta, ela realmente não importa. Não era isso que estava em jogo.
O Tahoumaru já tinha percebido, àquela altura, que sua luta não era altruísta. Ele usou o altruísmo como um pretexto. O que ele sempre quis foi o reconhecimento do pai e o amor da mãe, e por isso, rejeitados todos os caminhos fáceis para uma criança obter isso, ele foi pelo mais difícil, decidido a se tornar um samurai perfeito, alguém irrepreensível. Alguém que seu pai seria obrigado a reconhecer, e que sua mãe iria admirar. Foi por isso que Mutsu e Hyogo morreram. Foi por isso que o castelo de Daigo ardia em chamas. E, mesmo assim, ele fracassou.
Ele não reconheceu que estava errado. Ele reconheceu que havia perdido – e não só naquela luta, como em todas as anteriores, e também durante toda a sua vida, conforme sua mãe negava a ele seu amor enquanto rezava, sem que ele soubesse então, para o filho perdido: Hyakkimaru. Tahoumaru estava completamente derrotado. Seu último ato de bravura, sua redenção na morte, foi ter arrancado os olhos e negado ao último demônio um corpo que pudesse possuir.
E no fim, ele ainda morreu confortado pelo calor de sua mãe, talvez pela primeira vez na vida. Foi uma história trágica e muito bem contada.
Discordo de outras coisas que você disse também, mas só defender o Tahoumaru já me custou tantas palavras que finalizo por aqui, talvez seja mais produtivo comentarmos por partes assim
Gato de Ulthar:
Olha só, consigo concordar com tudo que o Fábio disse.
Se pararmos para pensar, o Tahoumaru sentiu mais o abandono da mãe do que o Hyakkimaru! Já que este nem sabia que mãe tinha. Mas isso é interessante, o Tahoumaru sempre se sentiu abandonado pela mãe e tentando agradar o pai.
Em suma, a vida dos dois foi trágica ao extremo em virtude da cagada que o Daigo fez ao realizar o pacto com os demônios.
Mas no fim das contas o Hyakkimaru saiu por cima, se bem que o final do Tahoumaru foi digno ao juntar ele com sua mãe, mostrando que mesmo tardio o reconhecimento dele como filho chegou.
No que concerne ao Hyakkimaru partindo numa jornada e deixando a Dororo sozinha, não vejo problemas nisso, é até bem condizível com a situação. O Hyakkimaru precisava de um tempo para sentir o mundo com o seu corpo completo e botar sua cabeça em ordem, e esse mesmo tempo serviu para a Dororo se estabilizar no povoado e também amadurecer.
E no final das contas, ambos acabaram ficando juntos, que é o que importa.
Vinicius Marino:
De fato. O Tahomaru não perdeu quando teve a espada rompida. Você consegue ver o olhar de desespero já quando estão lutando na sacada, e ele diz a Hyakkimaru que ele lhe tolheu tudo o que era importante. Que aquele era o seu castelo, e que ele não tinha direito sobre ele, pois nunca havia estado ali. De lá até o fim literal, foi apenas questão de aceitar uma derrota anunciada.
Agora, o Diego disse ter se incomodado de algumas escolhas de roteiro. De fato, essa conclusão foi bastante óbvia, mas digo isso no melhor dos sentidos. Várias das tomadas foram icônicas, mais símbolos que qualquer outra coisa. A espada que se quebra. Os olhos refletindo as chamas (depois de sua mãe dizer que ele tinha uma “chama interior”). As mãos do Daigo cobertas de sangue. O sangue escorrendo de sua cabeça e manchando o ícone de misericórdia.
Não acho que essas cenas devem ser lidas literalmente. Eles são como personagens de um drama Noh, presas em seus papeis, executando-os às últimas consequências. Algo cabível a um anime que, desde o começo, confrontou indivíduos com o imperativo de seguir ou não as regras a eles impostas.
Diego:
Ok, acho que sou voto vencido nessa Mas ainda acho que o anime teria se beneficiado de um ou dois episódios a mais…
Bom, mas falando dos finais de cada um, e o que dizer então do Daigo? Acabou que o grande responsável por tudo isso foi justamente o que saiu vivo. Como se sentem em relação a isso? Gostam da vitória moral do Hyakkimaru sobre o pai, ou acham que a cabeça do Daigo precisava rolar?
Gato de Ulthar:
Ele sair vivo e ver todo o seu domínio ter desmoronado é uma punição maior que a morte. Punição que foi maior ainda por causa da misericórdia do Hyalkimaru no momento decisivo.
Fábio “Mexicano”:
Ele não morreu mesmo? Para mim ficou ambíguo. Quero dizer, ele estava sangrando muito, muito mesmo.
Daigo Kagemitsu passou por algo parecido ao Tahoumaru, mas claro que, sendo conscientemente malévolo, e tendo admitido isso (“um samurai não deseja senão o poder total” – ainda que possamos fazer um esforço para contextualizar isso, não fica muito melhor), seu destino não foi tão benigno quanto morrer no colo de uma mãe amorosa.
O pai de Hyakkimaru conseguiu em seu último ato digno de um senhor feudal afastar a ameaça da invasão Asakura, que cobriria de sal as feridas já expostas do povo de seu domínio. Mesmo assim, diante do filho, ele não pôde senão também reconhecer a derrota.
Ele não se arrependeu, e Hyakkimaru não o perdoou. Mas Kagemitsu reconheceu que seu filho sacrificado era mais forte do que ele, em mais de um sentido, e poderia ter trazido para o domínio a prosperidade que ele não conseguiu.
Hyakkimaru por sua vez reencontrou o pai para encarar seus demônios, não os da Sala do Inferno, ou mesmo seu pai, como representação do mal que o acudiu, mas seus demônios internos, aqueles que queimam em nome da vingança e despertaram primeiro quando Mio foi morta. A estátua do Buda misericordioso, que ele recebeu de seu pai de criação, Jukai, ofereceu ao seu pai biológico como sua própria prova de misericórdia, na esperança que ela guiasse aquela alma perturbada para a luz que em vida parece nunca ter enxergado.
Vinicius Marino:
Eu também entendi que ele tinha morrido. O sangue escorrendo por cada orifício me pareceu um sinal de que seu corpo estava se auto-destruindo, consumido pela crueldade.
Seja como for, não há dúvidas de que o ato de clemência do Hyakkimaru foi uma vitória moral – e uma de que eu gostei muito. Nós conversamos bastante sobre todos os riscos que ele enfrentou em sua trajetória. Especificamente, em como restaurar a humanidade poderia ter consequências inesperadas. Por exemplo, privando-o dos poderes necessários para derrotar demônios. Ou então, fazendo-o sucumbir às facetas mais sombrias da natureza humana.
Eis, pelo contrário, que ao se tornar completo ele descobre, também, o caminho da virtude. Este não é mais um Hyakkimaru que cederá ao ciclo vicioso da vingança. Este não é um Hyakkimaru que corre o risco de se transformar num monstro, como tantas vezes ensaiou.
Se poupar seu pai mudou alguma coisa para o Daigo é questionável. Mas, sem dúvida, significou muito para ele.
Diego:
Nossa, só eu achei que o Daigo ficou vivo? Eu até voltei no episódio e… é, ele termina vivinho da silva (chorando lá dentro do salão dos demônios). A questão do sangue é uma que eu não tinha pensado, mas né, vimos personagens se curar de ferimentos piores, honestamente.
Mas bom, falamos do final do Hyakkimaru, mas o que acharam do final da Dororo? A título de curiosidade, tanto no mangá quanto no anime de 69 o final é bem diferente. Em ambos a Dororo acaba por ajudar numa revolta armada contra o Daigo (no anime, junto a um assentamento de camponeses próximo; no mangá, junto de alguns trabalhadores em condições de prática escravidão que estavam reforçando a fortaleza do Daigo). Em nenhum dos dois casos o dinheiro do seu pai entra em questão (na verdade, esse plot nem existe no anime de 69).
Aqui, o anime cortou fora a parte da revolução, e o dinheiro entra como ferramenta para… a construção de um estado independente, eu entendi direito? Sei lá, nesse ponto eu meio que prefiro, dentre os três, o final do anime de 69 (e talvez o Fábio queira opinar nisso, lembro que ele também estava assistindo o anime antigo ). Mas e vocês, o que acharam?
Fábio “Mexicano”:
Não terminei o anime antigo ainda. Espero terminá-lo a tempo de comentar ainda nesse último Café
Eu acho que um final sem revolução armada é mais coerente com a mensagem geral que o anime passa, muito embora a própria Dororo tenha defendido no final que é totalmente possível buscar a força sem perder a humanidade, então não seria estranho se ela tivesse feito isso.
Quanto à precisão histórica, é mais ou menos. Os domínios já eram na prática independentes, ligados uns aos outros e ao xogum por obrigações de honra, laços de sangue, etc. Como eu disse noutras sessões, houve casos de domínios que expulsaram seus governantes nobres e se auto-governaram por algum tempo, sendo o caso mais famoso o de Kaga, que durou mais de um século. Mas eles não chegaram a tanto sem lutar.
Em todo caso, o anime não diz que o domínio de Daigo se tornou um lugar pacifista. Dororo e os camponeses apenas tomaram as rédeas da própria vida sem precisar derramar sangue, e considerando o final miserável do Daigo Kagemitsu, com o castelo arrasado e sua família aniquilada, parece factível. O maior inimigo restante era externo, e esse Kagemitsu conseguiu expulsar em seu último ato como governante.
Vinicius Marino:
Eu vou mais além e digo que, para mim, uma revolução armada seria incoerente com a mensagem geral que o anime passou. Da forma como tivemos aqui, a decisão da Dororo tem uma beleza poética que traça um paralelo com a misericórdia do Hyakkimaru diante do pai: confrontados com a decisão de manter as coisas do jeito que estão (i.e. orientadas pela violência), eles decidiram fazer diferente.
De certa forma, a ideia de que construir um novo futuro assentado na riqueza e comércio (e numa riqueza que pode ser partilhada) é uma analogia para a derrocada de uma aristocracia parasitária, amparada pelo monopólio da força. É um tipo de discussão que acompanhou o sumiço histórico dos samurais – ou, pelo menos, que aparece dessa forma em outros animes e obras que exploram esse período. Samurai X é o exemplo mais didático.
Outro dia estávamos conversando sobre qual difícil era encontrar um anime que propunha virar a mesa e revisar o status quo. Dororo, nesse sentido, cumpre essa tarefa.
Agora, com o risco de digredir, quero só jogar aqui um outro “final” da Dororo que me chamou a atenção. Pelo que a série nos mostra, ela passou a assumir seu gênero após a puberdade, não é mesmo?
Nem sei o que tirar disso, pois foi o tipo de coisa que flutuou desamparada ao longo do anime. Mas vê-la adulta nessa tomada me fez pensar em quão arbitrário foi esse detalhe. E quão melhor a série teria sido se tivesse feito algo com ele.
Fábio “Mexicano”:
Eu acho que isso daí foi a definição de fanservice, no sentido neutro do termo. Sem significado, apenas para agradar uma parcela dos fãs que com certeza queriam vê-la assim. Por isso é tão inconsequente.
Gato de Ulthar:
Teve muita gente que reclamou na internet pela Dororo ter aparecido vestida como mulher, afirmando que ela era uma personagem “trans”, isso eu acho ridículo, pois não é por se vestir de homem que qualifica alguém como transexual. Ora, o fato da Dororo agir e se vestir como menino nunca foi explicado, muitas teorias podem ser feitas, para mim o mais plausível é que ser uma menina no contexto bélico que os pais da Dororo viviam era muito perigoso, mais do que ser um menino, devido a possibilidade de estupros e raptos, não que meninos não fossem suscetíveis a esse tipo de perversidade, mas com meninas, penso eu, o cuidado sempre foi mais elevado. E como ela passou a viver em um ambiente mais seguro, naturalmente o seu disfarce cômodo pode ser retirado. Além disso, a medida que Dororo fosse crescendo a própria puberdade faria o trabalho de a tornar mais feminina, como o crescimento dos seios e características físicas femininas, como quadris e etc.
Portanto, foi uma evolução natural, nada que me incomode e nem precise de mais tratamento.
Diego:
Eu gosto da Dororo ser uma garota. E gosto disso não ter a menor importância na história. Digo, no fim do dia, que diferença faz? O que eu não gosto é ela ser uma garota ser um segredo e este segredo não ter a menor importância na história. Podemos entender o porque dela se disfarçar, o Gato já explicou bem, fora que vamos e venhamos: ela é uma criança de rua, não deve exatamente ter um guarda roupa e maquiagem a disposição. Mas é, ainda fica como algo jogado. Se ao menos o anime tivesse dado explicitamente essa resposta…
Mas pontos ao anime por revelar isso, o que, no episódio 5? Bem melhor do que no último
Fábio “Mexicano”:
Se fosse revelação de última hora seria cagada. Da forma como foi achei bem ok.
Vinicius Marino:
O Diego roubou as palavras da minha boca. Sim, o fato disso ter sido um segredo é um detalhe solto que me incomodou. O anime deu a entender, deliberadamente, que havia algo mais nessa decisão da Dororo. E, depois, não apenas deixou isso de lado como insinuou que seja lá qual tenha sido seu trauma se resolveu sozinho.
Fábio “Mexicano”:
Na pior interpretação possível, fica a sugestão de que “virou mulher de volta” porque conheceu um homem forte e bonitão.
Mas não foi a minha impressão, estou só forçando a barra. Não duvido que alguém possa ter pensado assim, porém.
Diego:
Considerando que nem o mangá, nem o anime de 69, mostram uma Dororo crescida, eu vou chutar que essa imagem final dela é exatamente o que o Fábio disse antes: fanservice. E que ninguém pensou muito a respeito do porquê, só colocaram pro final não soar tão agridoce assim, dando a entender que os dois se reencontraram no futuro.
Fábio “Mexicano”:
Essa sim foi a minha interpretação. Histórias de jornada em anime costumam acabar com a separação dos companheiros de viagem. Dororo deu um vislumbre de um futuro em que eles se reencontram, o que é um pouco mais raro e mais satisfatório.
Vinicius Marino:
Esse foi outro dos meus problemas. Vê-los se separar, nem que apenas por um tempo, me pareceu gratuito. Depois de tudo o que passaram, esses dois especificamente tinham tudo para dar certos juntos.
Fábio “Mexicano”:
Concordo, mas né, é um tropo de anime de jornada. Só não saio listando aqui os que conheço que acabam assim porque seria spoiler, mas são vários.
Já assisti até slice of life sem jornada nenhuma (bom, tem “jornada interna”, se quiserem) que acaba assim. Acho que é uma coisa bem japonesa. Como é que chamam, mono no aware? Todas as coisas acabam.
Vinicius Marino:
Eu não me importaria com o cliché se eles tivessem um motivo crivel para segui-lo. Cliché pelo cliché, pelo contrário, é a matéria prima da ficção ruim. Um defeito desnecessário para um final bastante redondo em outros sentidos.
Fábio “Mexicano”:
Acho que vale lembrar que apesar de todas as licenças e alterações, ainda é uma adaptação. Suponho que não quiseram ir muito longe do original nesse quesito.
Diego:
Mesmo não gostando desse final, eu ainda vejo algum sentido nele. Acho que é importante o Hyakkimaru se separar da Dororo, nem que por um tempo. Até então ele estava dependente demais dela, como a única pessoa que ficou ao seu lado, e isso estava até sendo perigoso para a própria Dororo (com ele querendo ir pro meio de um futuro campo de guerra, por exemplo, e insistindo que ela o acompanhasse).
Fábio “Mexicano”:
Quero crer que esse é o sentido original do final. E concordo que faz sentido. Mas também faria sentido continuarem juntos, talvez até mais sentido, considerando o quanto o mundo era um lugar perigoso e como Dororo estava começando uma empreitada completamente nova, na qual um guerreiro poderoso como Hyakkimaru com certeza seria importante.
Diego:
Olha… Pra mim faz bem menos sentido no original Lembrando que o mangá meio que só “para”. O Hyakkimaru nem chega a recuperar todas as suas partes perdidas. E ele só se separa da Dororo porque… er… a jornada é perigosa demais pra uma garota? Soa como algo nessa linha, pra ser franco. Mas bom, o Hyakkimaru do mangá é completamente diferente do do anime. Ele fala normalmente, vê e ouve normalmente, e é ligeiramente menos psicótico quando irritado
Fábio “Mexicano”;
Hyakkimaru psicótico é o melhor Hyakkimaru.
Vinicius Marino:
Ele já não se separaram antes, quando a Dororo foi raptada pelo Itachi? Em todo caso, que tipo de perigo o Hyakkimaru está pensando em enfrentar? Ele já matou os demônios. Já derrotou o pai. Já se curou da obsessão. Qualquer outra ameaça mais mundana os dois terão melhor chance de encarar juntos.
Fábio “Mexicano”:
Sim, eu realmente não entendi porque ele precisou partir em uma jornada sozinho no final, depois de resolver as coisas com o pai.
Eu nem sei que tipo de coisas ele poderia fazer, na verdade. Ele é um guerreiro, e um muito específico que mata demônios e aprendeu a respeitar a vida humana. O que havia para ele naquele Japão? Claro, ainda havia criaturas sobrenaturais, mas imaginar um Hyakkimaru caçador de demônios como profissão soa ridículo.
Gato de Ulthar:
Pode ser que ele apenas queira viajar tendo a capacidade de sentir o mundo com todos os seus sentidos recuperados. Não precisaria necessariamente ser uma viajem com tom “bélico”.
Diego:
Bom, pra encerrarmos, que tal algumas palavras finais sobre o anime num geral?
Fábio “Mexicano”:
Melhor anime da primeira metade do ano. Não que tenha tido muitos animes muito bons, mas isso não depõe contra Dororo. É um anime muito bom. Tenho a vaga impressão que após a fantástica virada de temporada o anime perdeu um pouco a qualidade, mas não saberia apontar precisamente como ou por quê, então talvez seja só coisa da minha cabeça. Em qualquer caso, o final encerrou todas as tramas abertas necessárias e foi muito satisfatório.
Vinicius Marino:
Assino embaixo. Foi uma pérola do semestre. E também acho que o primeiro cour foi mais forte que o segundo. Talvez seja apenas o fator surpresa do nosso primeiro contato. Talvez, as histórias da segunda parte não tenham sido todas igualmente inspiradas (estou olhando pra você, menino dos tubarões).
De resto, quero frisar um elogio que o anime vem recebendo Internet afora. Ele conta uma história fechada, de forma competente, e exige muito pouco de familiaridade prévia com animes. De certa forma, é uma série ideal para introduzir novatos ao gênero.
Gato de Ulthar:
Gostei também de Dororo, é isso.
Mas vou escrever um pouco mais, ele foi um anime competente do começo ao fim, mesmo com algumas falhas, mas não prejudicaram o resultado final. As cenas de ação estavam muito boas, bem como as partes mais contemplativas também foram muito bem dirigidas.
Penso que Dororo foi uma adaptação que não ofendeu e até homenageou a memória do Osamu Tesuka.
Diego:
Engraçado que eu também senti que a qualidade caiu um pouco na segunda metade. Ou talvez, como o Vinicius apontou, tenha sido só que passou o “fator surpresa”. Ainda assim, Dororo fica como um dos melhores títulos de sua temporada, e também como um dos destaques do ano até aqui.
Mas tudo acaba um dia, incluindo essa nossa discussão Vamos então encerrando por aqui, e fica o meu agradecimento a todos que participaram e, claro, a você, leitor, que acompanhou Dororo junto de nós!