Review – Fushigi no Umi no Nadia (Anime)


Uma divertida aventura.


Na filmografia do diretor Hideaki AnnoFushigi no Umi no Nadia (ou Nadia: The Secret of Blue Water), anime de 1990 com 39 episódios, é talvez um de seus trabalhos menos comentados. E após vê-lo, da pra entender porquê. Apesar da série ter enorme importância na história do estúdio GAINAX, sendo seu primeiro anime para a televisão, esta certamente não é uma obra sem defeitos. Mas, dito isso, também não é uma sem qualidades.

Nossa história começa em 1889, quando o menino inventor Jean Rocque Raltique observa de longe uma garota de tez negra passando. Chamada Nadia, quando Jean vai falar com ela ambos são atacados pela ladra Grandis e seus dois capangas, Hanson e Sanson, que desejam uma misteriosa pedra azul que a garota leva consigo, a Blue Water. E é conforme os dois fogem que todo o grupo acaba imerso numa batalha travada pelo destino da Terra, conforme a antiga raça dos atlantes, liderados por Gargoyle, busca trazer de volta sua antiga supremacia sobre a humanidade, com a peça que falta em seus planos sendo justamente a Nadia e sua Blue Water.

Uma história marcada por um elenco carismático, uma atenção ímpar no desenvolvimento de seu universo e reviravoltas constantes, mas também por um ritmo problemático que não raras vezes faz o anime soar bastante arrastado, além de uma tendência a regredir o desenvolvimento de seus personagens. Uma obra com altos e baixos, e por isso mesmo difícil de recomendar indiscriminadamente. Ainda assim, fica a minha sugestão para ao menos conferir os primeiros episódios e decidirem por si próprios se querem continuar nessa aventura ou não. E dito isso: spoilers a partir daqui (incluindo do final do anime).

Nadia e seu leãozinho King.

Vamos começar essa review com os pontos negativos, e deles partimos para os positivos. Da minha experiência, Nadia apresenta dois maiores problemas, o primeiro deles sendo seu ritmo.

Agora, Fushigi no Umi no Nadia adota uma estrutura de arcos mais ou menos bem definidos, marcados quase sempre pelo ambiente dos personagens. Começamos com um primeiro arco onde Nadia e Jean fogem da Grandis e seus capangas, eventualmente terminando quando do primeiro encontro dos dois com o Nautilus, que após alguns episódios os envia para uma ilha próxima. É aqui que teríamos o nosso segundo arco, onde os personagens conhecem a Mary e tem o seu primeiro contato com Gargoyle e seus planos. Dai temos o arco deles no Nautilus, o arco da ilha, e por ai vai, quase sempre numa sucessão de calmarias e tempestades.

Um destes arcos se tornou particularmente infame pela sua lentidão e uso de episódios “filler” (no caso, inúteis), que é o arco da ilha. E enquanto ele é bastante problemático nesse aspecto, eu diria que o problema de sequências e mesmo episódios inúteis é um que permeia todo o anime. Mas mesmo quando estamos falando dos episódios úteis há de se reconhecer que o anime ainda peca muito em seu ritmo, e isso por conta da sua insistência em sempre trabalhar apenas uma “coisa” por vez por episódio: ou o relacionamento dos personagens, ou a lore daquele mundo, ou a trama da luta contra o Gargoyle, e assim por diante.

Isso significa que o tempo todo existe alguma coisa “em pausa” no anime. Pausam as relações dos personagens para avançarmos a história. Pausam a história para termos info dump da lore. Individualmente essas coisas são interessantes, e quase sempre são bem trabalhadas, mas no conjunto é uma decisão que custa muito ao ritmo da obra.

Episódios inúteis – divertidos ou não – existem desde o começo do anime.

O segundo problema são os personagens. Mais especificamente, o relacionamento deles. Ainda mais especificamente, o relacionamento entre o Jean e a Nadia, que é um interminável cenário de will they, won’t they. E mais uma vez, é o arco da ilha (e os subsequentes episódios dos personagens na África) que costuma ser apontado como o pior que o anime tem a oferecer nesse aspecto.

Num episódio, Nadia vê Jean sob o efeito de cogumelos alucinógenos, que ele comeu enquanto procurava plantas medicinais para ela. Com medo de perdê-lo, e reconhecendo seus sentimentos pelo garoto, Nadia o beija. No episódio seguinte, quando Jean já voltou ao normal, ela passa a agir mais a vontade perto dele, e ao final os dois mesmo se beijam uma segunda vez. Só que como o Jean não se lembrava que era seu segundo beijo, dado o estado em que estava no anterior, Nadia fica brava com ele, e assim permanece quase até o fim do arco.

Pior: ao final do arco da ilha, Nadia reconhece e reafirma que Jean é a pessoa mais importante para ela, e terminamos num momento bem bonito dos personagens partindo para a África. Mas eis que: tão logo chegam, Nadia se apaixona à primeira vista por um garoto da tribo na qual aterrizam. Isso é pior do que regredir a relação de ambos: é regredir a própria personagem. E tudo isso a troco de nada. Não ganhamos nada com esse vai e vem, e mesmo perdemos a chance de ver um desenvolvimento mais profundo na relação dos dois.

É frustrante, e justamente por isso eu entendo muito bem porque esse arco da ilha e os episódios da tribo africana são tão mal comentados. Quase todos que falam do anime colocam esses episódios como uma espécie de parenteses na obra, que é boa exceto nesse pedaço (ou assim dita o consenso).

Um dos aspectos mais frustrantes do anime é como ele ficar avançando e regredindo no desenvolvimento da Nadia.

Dito isso, eu acredito que esse arco tão criticado possui lá seus méritos, mas mais nesse assunto em breve. Por agora, e após esses parágrafos de críticas, vamos falar um pouco de forma mais geral sobre os acertos do anime.

Para começar: o elenco da obra é claramente o seu ponto mais forte. São personagens interessantes, quase sempre multifacetados, com suas próprias visões de mundo, e bem fáceis de se gostar. Eu reconheço que são descrições um tanto quanto vagas, mas são ainda as impressões que eu tive assistindo o anime. Mesmo seus momentos e episódios inúteis iam do tolerável ao efetivamente agradável só pelo fato de podermos ver mais desses personagens e suas interações. E pontos ao anime por conseguir fazer uma personagem criança que fosse ao mesmo tempo verossímil e não irritante (ou seja, a Mary).

E enquanto o relacionamento dos dois é bem mal conduzido, tanto o Jean quanto a Nadia são personagens interessantes individualmente. Que sim, em diversos momentos se mostram teimosos, infantis e bem pouco empáticos um para com o outro, mas isso não deixa de ser parte do ponto. Ambos estão apenas entrando na puberdade, em seus 14 anos sendo ainda muito mais crianças do que adolescentes de fato. Jean é ingênuo, Nadia é idealista, e o anime fará um ótimo trabalho e termos de desafiar as visões de mundo de ambos e de expor a eles a própria infantilidade.

Grandis e seus capangas, Hanson e Sanson, também se provam personagens interessantes ao seu modo, ainda que, após deixarem para trás seu papel de vilão, sua função na história se torne muito mais a de espelhos e conselheiros para os protagonistas, enfatizando assim a inexperiência infantil destes pelo contraste com a experiência dos mais velhos (sobretudo nas questões amorosas).

Enquanto o relacionamento dos protagonistas tem seus problemas, Nadia e Jean ainda são personagens interessantes.

O universo da história é também bem interessante. Já aqui vemos o gosto do Hideaki Anno por usar de referências à mitologia judaico-cristã, com nomes saídos do gêneses abundando em Nadia. Os atlantis, essa raça alienígena extremamente avançados, são postos como o deus do velho testamento, os verdadeiros criadores da humanidade, havendo inclusive um Adão ainda “guardado” na Red Noah, uma das espaçonaves dos atlantes. Sua arma máxima é a Torre de Babel, cujo propósito original na verdade era o de se comunicar com seu planeta natal – ou seja, o de atingir os céus. Além de outras referências, muito melhor integradas àquele mundo do que seriam em outras obras do mesmo diretor no futuro (olhando pra você, Evangelion).

Outros detalhes, enquanto não particularmente importantes, são também no mínimo interessantes, como a ideia da existência de uma raça de répteis humanoides inteligentes que reinaram na Terra durante a era dos dinossauros, antes mesmo da chegada dos atlantes. É um mundo com sua própria história, e que genuinamente parece existir para além dos protagonistas, mesmo para além do conflito maior que rege a história (e olha que esse é em si mesmo bem grande). Sim, eu tenho um ou outro nitpicking a fazer, como o fato de ser muito estranho haver dinossauros (que foram extintos 65 milhões de anos antes) na Red Noah (que teria chegado à Terra apenas 2 milhões de anos antes), mas são detalhes.

Como eu disse, é frustrante como o anime constantemente precisa por a história em pausa para nos contar sua lore, mas ao menos o resultado final é positivo. Construção de mundo é um dos aspectos onde eu não raras vezes sinto que os animes modernos pecam bastante, talvez porque o formato restrito de apenas 12 (ou 24) episódios não deixe muita margem para o devido desenvolvimento do cenário, e são obras como Nadia que reforçam essa minha visão, sendo um forte contraste com não poucos títulos modernos nesse quesito.

É um mundo vivo e bem explorado.

E nisso chegamos aos temas da obra, que na minha opinião são ainda outro de seus pontos mais fortes, lado a lado com seus personagens. E é aqui que eu terei de bancar o advogado do diabo e defender, mesmo que só um pouquinho, o arco da ilha.

Em grande medida, Nadia é uma história que busca nos alertar sobre o progresso indiscriminado da ciência, e o caminho ao qual ele leva: a destruição. Que a ciência seja a base de ferramentas de luta, como navios de guerra e submarinos, é uma das críticas que a própria Nadia faz com alguma frequência. Ela é, afinal, uma idealista, que acredita na sacralidade de toda vida e despreza a guerra, além de ter uma visão bastante romântica da natureza.

O anime, porém, se recusa a ter uma visão tão preto no branco, e é aqui que entra o arco da ilha. Seu início vem justamente para desafiar a visão de mundo de sua protagonista, que ao tentar viver na natureza sem as ferramentas humanas acaba por falhar miseravelmente. Não se trata, porém, de um caso no qual a natureza seja má: ela é apenas absolutamente indiferente, como vemos quando a Nadia, quase se afogando, pede ajuda da vida marinha no entorno apenas para ser ignorada – e dai salva pelo Jean em um barco.

Ela até termina por concluir que o homem precisa de ferramentas – precisa da ciência – para poder coexistir com a natureza. Nenhum dos dois são inerentemente bons ou maus, e pensar o contrário seria apenas infantil, uma visão romântica e maniqueísta bastante típica da infância e adolescência. Sim, depois desses episódios iniciais o arco da ilha de fato degringola numa sequência embaraçosa de bobagens, mas pelo menos o começo adiciona uma muito necessária nuance ao anime.

O arco da ilha tem muitos problemas, mas também há boas ideias aqui.

E vale dizer: eu gosto de como apesar de tudo o que ela passa na ilha, Nadia continua uma vegetariana. O anime é bastante competente em retratar essa condição da personagem, mostrando seu lado mais combatente, mas também a lógica que opera por trás.

Muita gente diz que vegetarianos não deveriam se intrometer no que os outros comem, que se eles querem evitar carne tudo bem, mas que não perturbem os outros, e os que essas criticas falham em entender é que essa questão não é uma de gosto, mas sim de visões de mundo. A lógica vegetariana é a de que a vida de um animal é tão valiosa quanto a de uma pessoa, e que portanto matar um animal é tão imoral quanto matar uma pessoa. Visse você alguém comendo carne humana, ainda diria que ninguém deve se intrometer? Porque essa é a visão de um vegetariano quando vê alguém comendo carne animal.

Os personagens no anime cometem esse exato equívoco, pensando que a posição da Nadia de não comer carne é só porque ela não gosta, não porque existe por detrás dessa decisão toda uma filosofia – ainda que rudimentar, ela é uma criança afinal – sobre o valor da vida. Que sim, ela leva a extremos quase irracionais, se opondo ao consumo de carne mesmo numa situação de naufrágio em uma ilha deserta, mas ai de novo entra o fato dela ser ainda bastante imatura

Eu inclusive diria que é essa sua filosofia de ver toda vida como igual que mais contrasta com a do vilão, Gargoyle, que vê os humanos como inferiores aos Atlantes. O imperador Neo até compara os humanos a animais, então os paralelos não poderiam ser mais óbvios. E tal como Nadia não crê numa diferença inata entre pessoas e animais, ela também não crê numa hierarquia entre humanos e atlantes.

É graças à sua visão sobre o valor da vida que Nadia se recusa a se juntar ao Gargoyle.

Antes de finalizar a review, eu provavelmente deveria ao menos reconhecer a existência do filme de Nadia, que se passa após os eventos do anime (mas antes do epílogo pós créditos): Fushigi no Umi no Nadia: Original Movie. Que, francamente, é bem ruim.

O filme tem o mesmo problema de ritmo do anime: das quase uma hora e meia de duração, quase trinta minutos são ocupados com um recap da série de TV (e um bem mal feito, ainda por cima, que certamente não ajudaria em nada a quem não tivesse visto o anime ainda). E pelo menos alguns personagens parecem regredir a posições de bem cedo na série, como a Grandis e seus capangas voltando a uma vida de crimes.

Até há algumas boas ideias aqui. Eu gosto da ideia da Nadia buscar se distanciar um pouco do Jean, tendo uma vida própria e provando a própria independência. E também gosto da ideia do vilão ser um remanescente dos Neo Atlantis. Mas nenhum desses elementos é particularmente bem trabalhado, e no fim acaba que o filme tem todos os defeitos do anime sem nenhuma das qualidades.

Ao que parece o próprio Hideaki Anno não trabalhou no filme, o que talvez explique muitos dos seus problemas. E pelo aspect ratio da coisa eu chutaria que o filme deve ter sido ou um especial para a televisão ou lançado diretamente em VHS: acho bem difícil que isso tenha passado em algum cinema. Ou seja: foi provavelmente apenas um cash grab mal feito para lucrar um pouco mais em cima da popularidade do anime.

Felizmente não é necessário assistir o filme para entender a série, então façam um favor a si próprios e passem longe dessa coisa, caso ainda não soubessem da sua existência.

Tem um filme. Fiquem longe dele.

Fushigi no Umi no Nadia não é uma história sem defeitos, e seus defeitos também não são nada menor, podendo sim impactar significativa no aproveitamento da série. Ainda assim, é inegável que há muito de positivo aqui.

Uma aventura descompromissada, com personagens cativantes, um mundo vivo e expansivo, temáticas provocativas tratadas com a devida nuance, e algumas ótimas sequências de batalha, onde constantemente esperamos para ver como o Nemo tirará o Nautilus e sua tripulação das piores circunstâncias. Ah sim, e um bom tanto de reviravoltas no roteiro (algumas talvez mais previsíveis do que outras) que mantém o espectador sempre colado à tela.

Seu ritmo podia melhorar. Seu trato no desenvolvimento de seus personagens e suas relações podia melhorar. E sua animação também não é nada de especial, mesmo para a época. Mas ainda é um anime que eu fico feliz de ter assistido, apesar de algumas frustrações aqui e ali. E se por acaso você chegou até esse ponto da review sem ter assistido Nadia ainda, fica aqui novamente a minha recomendação para dar uma chance ao título.

Ah sim, e como uma última curiosidade antes de encerrarmos: ao que parece, o conceito original de Nadia foi proposto por ninguém menos que Hayao Miyazaki, ainda anos anos 1970. Não é uma informação muito útil, e nem eu soube como encaixá-la no restante do artigo, mas fica aqui só porque sim.

E você, leitor, que achou de Fushigi no Umi no Nadia? Sinta-se a vontade para descer a página e deixar um comentário com a sua opinião.

Imagens (na ordem em que aparecem):

1 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 1

2 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 1

3 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 13

4 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 32

5 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 4

6 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 19

7 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 23

8 – Fushigi no Umi no Nadia, episódio 37

9 – Fushigi no Umi no Nadia: Original Movie

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Um comentário sobre “Review – Fushigi no Umi no Nadia (Anime)

  1. Li a review por preguiça de ver essa obra já faz anos (e não conseguistes me convencer a vê-la) e, enquanto lia, percebia certas similaridades com produções do Studio Ghibli. Aí chego no final, vejo a menção ao Miyazaki e tudo se encaixa, haha.

    Para ser sincero, esta obra me parecia mais interessante pelo seu valor artístico-visual e, ao que parece, isso não é uma verdade. Então vou ficar só com esta análise, já que tô cansado de apostar em animes antigos e longos.

    Curtido por 1 pessoa

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