Finalizando em grande estilo.
Devo confessar: ainda que uma imagem possa valer por mil palavras, eu sigo preferindo as palavras. Uma boa direção, uma boa composição de cena, uma boa animação, uma boa fotografia, são todos elementos de uma obra áudio-visual que podem muito me impressionar, mas é quase sempre aquilo que é dito o que eu mais lembro após a experiência. Meu episódio favorito em Fate/Zero é aquele em que Saber, Rider e Archer sentam e discutem a natureza e o papel do rei. E eu achei toda a série de filmes de Kare no Kyokai um saco, exceto pelo epílogo onde temos os protagonistas conversando.
Então eis aqui um clichê com o qual não muita gente parece se importar, mas que eu absolutamente adoro: quando uma obra – particularmente um anime – termina com um monólogo. Exemplos do tipo nós temos aos montes, de algo tão mainstream quanto Fullmetal Alchemist: Brotherhood até um clássico cult como Ginga Eiyuu Densetsu (Legend of the Galactic Heroes). Essas últimas palavras que servem de conclusão a tudo que vimos até ali; quando bem aplicado é um clichê capaz de trazer tanto uma sensação de satisfação com o que se assistiu quanto alguns dizeres que ficam na memória.
Dito isso, eis o que pretendo com este artigo. Eu quero partir de alguns estudos de caso para tentar explicar ao leitor o que eu vejo de tão interessante num clichê que você talvez nem tivesse ainda se tocado de que era um clichê. E claro, no processo eu vou tentar responder a algumas possíveis críticas a esse recurso, que de fato pode muito bem ser mal aplicado. Inclusive, e para não estender essa introdução além do necessário, comecemos então já com um caso do tipo (bom, mais ou menos…).

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Pompa e circunstância: Accel World
Eu disse que começaríamos com um mal exemplo, e o monólogo ao final de Accel World é certamente um do tipo. Feito pelo protagonista, Haru, ele até começa bem. Pessoalmente, eu gosto bastante da primeira frase, “todos vivemos no espaço entre um instante e a eternidade”. É poética, suficientemente significativa, e se liga muito bem ao anime em questão, uma história sobre um mundo virtual no qual o tempo passa muito mais rápido do que no mundo real. O problema é o que vem depois.
Todo o restante desse discurso é uma bagunça de lugares comuns. Coisas como encontros e desencontros, mudanças e recomeços, finalizando com o potencial humano de seguir em frente e “acelerar”. E enquanto Accel World tem encontros e desencontros, mudanças e recomeços, e tudo mais, eu não diria que esses elementos possuem ênfase e peso significativos o bastante para o anime “merecer” esse seu discurso final. O resultado sendo algo que soa legal, mas ao mesmo tempo vazio.

Como disse na introdução – e irei reiterar mais algumas vezes ao longo deste artigo – o monólogo de encerramento deve ser um momento de conclusão. Ele vem, afinal, para fechar a história. É imperativo, portanto, que ele se ligue à história que conclui. Sem isso, ele inevitavelmente soa forçado.
Entretanto, eu não escolhi Accel World como o primeiro estudo de caso apenas por achar o seu monólogo final ruim. Eu escolhi porque, apesar de achar ruim, eu ainda gosto bastante desse final. Isso porque se o que é dito não é particularmente brilhante, todo o restante nessa sequência é muitíssimo bem construído. Golden Glory, a OST que toca durante esse momento, dá à cena uma apropriada aura de solenidade, enquanto que os clips mostrando todos os personagens que vimos ao longo do anime cuidam de passar a sensação de um ciclo que se fecha.
É uma sequência muito bem construída, e também bastante característica desses monólogos de encerramento (como, aliás, poderemos ver nos exemplos subsequentes). Um discurso é um momento solene, sobretudo na ficção, e um monólogo nada mais é do que um discurso cuja audiência é o espectador ou leitor. E o que Accel World melhor demonstra é que quando o momento é tratado com o devido cuidado torna-se possível criar uma cena memorável mesmo que o texto em si não seja dos melhores.

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Fechando um ciclo: Dragon Ball GT e K-ON!
Dois exemplos radicalmente distintos que, no fim das contas, servem a um mesmo propósito. O de concluir, em fato, duas histórias: a narrativa em si, a trama que acompanhamos até esse ponto, mas também a história de um personagem em particular.
O monólogo final em Dragon Ball GT é extremamente curto. Em fato, eu posso mesmo citá-lo na íntegra: “Por sua causa, Goku, foi divertido. Inocente, alegre, e gentil. Esse era o Goku que todos amavam. E assim, a história de Dragon Ball chega ao fim”.
Muito como em Accel World, o que torna o final do anime tão impactante é muito mais a sequência final como um todo, cuidadosamente montada de forma a passar a sensação de conclusão, do que aquilo que é dito nesse monólogo. Flashbacks das duas séries predecessoras (Dragon Ball e Dragon Ball Z) sendo exibidos ao som de Dan Dan Kokoro Hikareteku, música de abertura de Dragon Ball GT. Mas diferente do exemplo anterior, neste caso aquilo que é falado de fato corresponde à série em si. São algumas frases curtas, é verdade, mas não é como se a cena precisasse de mais.
Dragon Ball é, acima de tudo, a história do Goku. Justamente por isso, e apesar de todas as críticas que a série recebe, eu sempre defenderei o final de Dragon Ball GT, que em poucas palavras soube encapsular muito bem o apelo que tem o seu protagonista, ao mesmo tempo que dando um último adeus a ele.

Em seu episódio final, K-ON! atinge algo semelhante. Mas antes de mais nada, são necessárias duas ressalvas. Primeiro: eu me refiro aqui à primeira temporada do anime, que finaliza no episódio 12. E segundo: apesar de eu tratar neste artigo de monólogos de finalização, eu quero deixar claro que estes não precisam ser literalmente a última coisa que a obra nos mostra, sendo possível atingir o exato mesmo efeito enquanto deixando espaço para mais algumas palavras.
Pois bem, no décimo segundo episódio da primeira temporada de K-ON!, logo que irá começar o último show do anime, temos que a protagonista, Yui, se esqueceu de sua guitarra em casa. Ela volta então à sua residência correndo, a fim de buscá-la, e conforme a menina corre de volta para a escola nós temos um singelo monólogo onde ela contrasta o seu presente com o seu passado.
Como a própria coloca, no começo do anime Yui não sabia o que gostaria de fazer como uma aluna do ensino médio, e temia passar pela vida sem encontrar algo de que realmente gostasse. Mas ela encontrou: um lugar para si, na companhia de suas novas amigas, no clube de música leve da sua escola. É um momento que serve muito bem de conexão entre as duas pontas de uma série que é, em sua maior parte, consideravelmente episódica. Uma conclusão da trama que, também, conclui a história de sua protagonista.

Assim como nos exemplos anteriores, há aqui toda uma construção focada em evocar um sentimento de finalização. A cena é contrastada com a primeira cena do anime, quando Yui sai apressada de casa, com medo de se atrasar para a escola. Mas se ali ela parava a cada passo para cumprimentar e conversar com aqueles ao seu redor, aqui ela corre direto para a escola, focada como está na sua tarefa. Na tela, um rápido flashback de quando a Yui primeiro subiu as escadas até a sala do clube.
Animes drasticamente diferentes, com propostas drasticamente diferentes, mas que empregam um “pacote” bem semelhante em seus momentos finais. É claro: nem sempre todo o pacote estará presente, e nem sempre o monólogo final vem para concluir o arco de um personagem em específico. E enquanto eu irei abordar o primeiro em breve, vamos antes falar um pouco desse segundo.

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Conclusão temática: Youjo Senki e Sora Yori mo Tooi Basho
Concluir a trama ou o arco de um personagem são boas – e complementares – formas de trazer uma sensação de conclusão à uma história, mas outra tão válida quanto é de prover uma conclusão a nível temático. E novamente temos dois exemplos bastante distintos para analisar.
Youjo Senki é um caso bem interessante de se abordar, dado que sua conclusão é exclusivamente temática – algo que inclusive já abordei em outro artigo. História sobre um assalariado japonês que reencarna como uma garotinha dotada de poderes mágicos em um mundo imerso no equivalente da nossa primeira guerra mundial, esta é uma história sobre a guerra e sobre a inerente contradição humana de se buscar a paz por meio da violência.
O episódio final do anime não traz muito em termos de uma finalização da história, o que já seria de se esperar de uma adaptação de light novel. Se mais nada, o anime termina em um ponto de virada, no qual a guerra, longe de acabar, apenas se intensifica. E também não da pra argumentar muito em favor de uma conclusão para a protagonista. Ela não termina o anime exatamente igual a quando começou, mas ela certamente ainda está longe de completar o seu arco. Tematicamente, porém, a obra se fecha muito bem.

Nesse último episódio nós temos não um, mas três monólogos da protagonista, que juntos martelam o ponto que o anime tenta passar. Agora, eu não vou analisar cada um em detalhes aqui, dado que já o fiz no meu vídeo ensaio Youjo Senki: Uma História Sobre a Tolice Humana. Mas alguma explanação sobre eles é bem vinda.
O primeiro (que, ok, na prática é muito mais um diálogo do que um monólogo, ainda que a pessoa com quem Tanya fale mal abra a boca) enfatiza o como as ações humanas são comandadas muito mais pela emoção do que pela razão. O segundo, e também o monólogo mais “tradicional” dos três, fala da contradição inerente à guerra, de se buscar a paz através do confronto. E o último, pós-créditos e um discurso da Tanya para seus subordinados, é uma reafirmação da protagonista enquanto uma personagem orgulhosa e teimosa – ou seja, uma reafirmação da sua própria humanidade.
É um bom final, não apesar do quão aberto é, mas justamente por conta do quão aberto é. Como eu coloquei no meu artigo sobre Youjo Senki, mencionado acima, para uma espécie movida pelas paixões e que busca até mesmo a paz por meio da violência é mais do que natural que o conflito não poderia ter fim. E essa conclusão só é possível graças a esses discursos da protagonista.

Numa veia similar, Sora Yori mo Tooi Basho se encerra com um monólogo que reforça os temas da obra. Anime sobre um grupo de garotas do ensino médio que acabam embarcando em uma jornada para a Antártica, o discurso final reforça os temas de sair e conhecer o mundo, bem como o do caráter transformador que uma viagem pode ter.
Verdade seja dita, é ligeiramente mais complicado de chamar a este de “monólogo”, pois enquanto o texto é claramente um único texto coeso, as quatro protagonistas se revesam em recitá-lo. Ainda assim, para todos os efeitos, e tirando as múltiplas dubladores, esse discurso final funciona essencialmente como todos os demais mencionados aqui até agora.
Neste caso, a conclusão temática é apenas mais uma, que vem junto da conclusão da história, conforma as garotas fazem seu caminho de volta para casa, e após a conclusão do arco de cada personagem em episódios passados. Mas nem por isso ela é menos indispensável. E enquanto certamente seria possível encerrar a obra sem essas palavras finais, eu ainda defendo que elas em muito enriquecem esse final.

Um monólogo que busque trazer uma conclusão temática à história precisa lidar com pelo menos dois problemas. O primeiro é o mesmo daqueles que buscam trazer uma conclusão a um personagem: o que é dito precisa ser condizente com o que foi mostrado, do contrário o discurso soa apenas como forçado. O segundo já é um pouco mais específico, na medida em que um discurso do tipo pode facilmente parecer subestimar a inteligência do espectador, soando mais como um “o que aprendemos no episódio de hoje” do que realmente como uma conclusão adequada para os temas apresentados ao longo da história.
Uma boa apresentação certamente ajuda, não há dúvidas disso. Mas tanto melhor se o monólogo estiver dizendo algo de significativo. Não de inédito, notem bem: esse é o momento da conclusão, e não o de introduzir novos problemas, questões, considerações, ou o que for. Mas sim significativo, sabendo condensar em poucas palavras os temas que a obra abordou. Algo que Sora Yori mo Tooi Basho soube fazer muito bem.

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Para além do anime: Tom Sawyer e Planetes
Sendo bastante sincero, esta seção só existe porque eu não queria deixar de mencionar os monólogos que encerram estes dois mangás. Embora, para todos os efeitos, este acabe sendo um bom momento para falar do recurso fora de todo aquele “pacote” que mencionei no começo do texto, dada a ausência de som e movimento em um mangá.
Mangá de Shin Takahashi, Tom Sawyer é um coming of age cuja protagonista, uma jovem universitária que volta à sua cidadezinha de origem para presidir o funeral da mãe, passa por um processo de amadurecimento, autoconhecimento, e de reafirmação de sua vontade no que tange à carreira que decidiu seguir. Seu monólogo final reitera esses temas, e serve portanto como uma conclusão do arco da protagonista.
Planetes, por sua vez, é um mangá de Makoto Yukimura ambientado no futuro próximo, onde acompanhamos uma equipe de lixeiros espaciais, responsáveis por manter a órbita terrestre segura para viagens. Aqui, nosso protagonista é Hachimaki, que possui o sonho de um dia comprar sua própria nave espacial. Seu discurso final (que no caso é um discurso de fato) é muito mais temático, ainda que também faça muito em termos de concluir o desenvolvimento do protagonista. Mas eu evito de entrar em maiores detalhes pois neste caso em específico seria preciso dar alguns spoilers da obra.
Ambos os exemplos trazem bons monólogos finais, que concluem bem os temas apresentados ao longo de suas respectivas obras. Falta a eles, porém, a pompa que encontramos em um anime, e justamente por isso é tão mais importante que sejam bem escritos. Claro, um mangá ainda possui elementos visuais, que ambos os exemplos se utilizam muito bem, mas no final é o texto aquilo que mais importa aqui.

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Concluindo
Eu acho importante apontar que toda a distinção que fiz, ao longo deste texto, entre monólogos que concluem um arco de um personagem e monólogos que concluem os temas da história, é em enorme medida bastante artificial. Esta não é uma distinção rígida, e eu a fiz somente com o propósito de apontar algumas das características que me fazem apreciar tanto esse recurso.
Recapitulando, esses monólogos são uma oportunidade de fornecer um fechamento mais “textual” à obra, reforçando mensagens e desenvolvimentos com uma apresentação que as tornam bem mais memoráveis para o espectador. Pode ser mal feito? Sem dúvida nenhuma que pode! Mas quando bem feito, é um recurso que fornece uma muito satisfatória sensação de fechamento.
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E você, leitor, tem algo a acrescentar? Sinta-se a vontade para descer um pouco mais a página e deixar um comentário com a sua opinião.
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1 – K-ON!, episódio 12
2 – Fullmetal Alchemist: Brotherhood, episódio 64
3 – Accel World, episódio 24
4 – Accel World, episódio 24
5 – Dragon Ball GT, episódio 64
6 – K-ON!, episódio 12
7 – K-ON!, episódio 12
8 – Youjo Senki, episódio 12
9 – Youjo Senki, episódio 12
10 – Sora Yori mo Tooi Basho, episódio 13
11 – Sora Yori mo Tooi Basho, episódio 13
12 – Capas brasileiras dos volumes 1 a 4 de Planetes.
Eu creio que esse tipo de encerramento é muito influenciado pela dramaturgia clássica,principalmente a dramaturgia de Shakespeare,exemplo é a Tempestade que é encerrada textualmente de forma brilhante. O encerramento textual de Fullmetal Alchemist Brotherhood é maravilhoso pois é um encerramento de uma jornada e a renovação de um ciclo. Amei o artigo.
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