
Si vis pacem para bellum. Se quer a paz, prepara-te para a guerra. Um velho provérbio de um povo que construiu todo um império com guerras preventivas cujo propósito seria garantir a paz: os romanos. É uma frase que expressa uma profunda contradição humana: somos uma espécie marcadamente violenta, mas que ainda assim almeja pela paz, mesmo que a força. Ao mesmo tempo, ela é uma frase que deixa de lado uma triste verdade, sobretudo nos dias atuais: nem toda guerra visa a paz. Instrumento político, instrumento econômico, mesmo instrumento religioso: a guerra pode trazer benefícios o bastante a certas pessoas a tal ponto que ela pode se tornar um fim em si mesma. Anime não é muito bom em retratar guerras, muito menos as sutilezas que a engendram. Sim, a guerra já apareceu como cenário em incontáveis obras, mas quase sempre ela é apenas isso: cenário. Quando muito temos junto disso alguma mensagem sobre os horrores da guerra ou a tolice humana, uma mensagem que, sim, é sempre atual, mas cuja repetição já a tornou apenas mais um lugar-comum narrativo.
Flag foi lançado em 2006, no formato de uma série de 13 episódios para a internet. Uma obra original do estúdio Answer, com roteiro de Toru Nozaki e direção de Ryosuke Takahashi e Kazuo Terada. A história se passa no país fictício de Uddiyana, onde uma guerra civil entre duas facções religiosas já ocorre há algum tempo. Fotojornalista, Saeko Shirasu é enviada para cobrir o evento, e em um golpe de sorte tira uma foto que viria a se tornar um símbolo de paz e esperança para o povo de Uddiyana. Com a intervenção das Nações Unidas no país, um acordo de paz está para ser assinado, mas eis então que a bandeira que aparece na foto de Shirasu, e que se tornou ela mesma um símbolo de paz, é roubada por um grupo terrorista extremista. Uma equipe é então montada para ir atrás da bandeira, e as Nações Unidas querem que Shirasu documente todo o evento com sua câmera. Como sempre, não há muito mais que eu possa dizer sem entrar em spoilers, então considere esse o seu aviso. Esse é um anime que realmente vale a pena assistir, e se ainda não o fez fica aqui a minha recomendação.

Começando então a review, um aspecto do anime que eu acho que vale a pena abordar já de início é sem dúvida a sua estética. Toda a história é contada através do ponto de vista da câmera, seja esta uma câmera fotográfica, câmera de vídeo, ou mesmo a câmera de um computador. É uma decisão que coloca Flag como um dos únicos animes a pertencerem ao gênero found footage, isso se não for efetivamente o único. O leitor possivelmente está mais familiarizado com o gênero graças ao clássico de terror The Blair Witch (A Bruxa de Blair), de 1999, e aqui há um paralelo interessante entre as duas obras. Vejam, no cinema, o maior apelo do gênero found footage é o seu custo: comparado aos filmes de maior orçamento, obras do gênero são absurdamente mais baratas de serem produzidas. Mas é meio evidente que essa não foi, e nem poderia ter sido, a motivação por trás de Flag, considerando que trata-se de uma animação. O que levanta então a pergunta: por que usar desse estilo para contar sua história?
A melhor resposta que eu posso dar a essa pergunta é que Flag não é só uma história sobre a guerra. Acima disso, essa é a história de dois jornalistas, e como eles experimentam a essa guerra. Falar isso pode parecer óbvio. Afinal, é claro que uma história será sobre os seus protagonistas, nada de novo aqui. Mas o que eu quero dizer é que isso é mais do que uma escolha narrativa: é também uma escolha temática. Responda rápido: uma câmera é objetiva? Alguns possivelmente diriam que sim, mas a verdade é um pouco mais complicada do que isso. Mesmo ignorando softwares de edição que permitem modificar qualquer foto ou vídeo, a simples escolha do ângulo correto ou da quantia de luz adequada pode fazer duas imagens de uma mesma “coisa” parecerem completamente diferentes. É, pondo em termos práticos, a diferença entre o fotógrafo que te cobra 50 reais para o fotógrafo que te cobra 500: a pessoa por trás da câmera importa mais do que pode parecer a princípio.

O gênero found footage é ideal para criar uma sensação de documentário. De objetividade. De que estamos vendo a verdade tal como ela se configura no mundo real. Mas é claro que a situação é bem mais cinza do que isso. O próprio anime já começa com uma foto que é importante menos pelo que ela retrata e mais pelo que ela representa: a foto da bandeira que Shirasu tira, que se converte em um símbolo de busca pela paz em uma nação dividida. Ao longo da trama, vemos a frustração dos jornalistas no lado do Akagi, que são mantidos no escuro pelas autoridades encarregadas do processo de paz. A própria Shirasu só integra a equipe responsável pela recuperação da bandeira para que possa retratar o heroico esforço de recuperação de um símbolo de paz das mãos de bárbaros extremistas – é propaganda muito mais do que é documentação. E claro, uma vez que se descobre que o responsável maior por esses extremistas é justamente uma das figuras religiosas necessárias para se firmar o tratado de paz, as fotos e vídeos que Shirasu faz são imediatamente confiscados – e oficialmente aquela missão deixa de existir.
Flag é um drama, e como tal os elementos humanos inevitavelmente tomam o posto central da narrativa. Com eles, porém, temos uma curiosa história sobre pessoas que são, elas mesmas, figuras limítrofes. Shirasu e Akagi não pertencem a Uddiyana, mas acabam se envolvendo com a região a um nível bastante pessoal conforme tentam executar o seu trabalho. Ao mesmo tempo, eles são a ponte que liga Uddiyana ao mundo externo: como jornalistas, eles documentam e expõem o que veem, mas entre eles e qualquer pretensa verdade existe ai uma longa cadeia de forças políticas agindo de todos os lados possíveis. Estrangeiros, mas também residentes. Divulgadores da versão oficial, enquanto suspeitos de qual seria realmente a verdade. O contraste entre a objetividade da câmera e a subjetividade do sujeito é bastante evidente aqui. Mais do que uma história sobre a guerra, esta é uma história do retrato de uma guerra – e daqueles que a viveram.

E que retrato emerge das imagens de Shirasu e Akagi? Bom, um bastante realista, e também consideravelmente diferente daquele que estamos acostumados a ver nos animes. Em primeiro lugar, ao invés de um grande poder imperialista tentando dominar a um território menor, a guerra em Flag é uma guerra civil, e uma lutada não entre um governo opressor e um pequeno grupo rebelde, mas sim uma que tem como forças antagônicas duas religiões e os seus seguidores. Em segundo lugar, a guerra não acontece por meio de épicas batalhas em campo aberto, mas sim por uma mescla de atitudes simbólicas (o próprio roubo da bandeira sendo uma destas) com o puro e simples terrorismo. E terceiro, vale também mencionar que a guerra é muito mais sentida do que presenciada. Enquanto o anime certamente tem os seus momentos de combate e explosões, no retrato daquela cidade e das pessoas que ali vivem a guerra surge muito mais como uma constante ameaça do que na forma de tiroteios incessantes.
Claro, nem tudo são flores. Num cenário até que bastante realista (diria até mesmo tristemente realista, quando você para para pensar que o anime já tem mais de dez anos e ainda parece incrivelmente atual), a presença dos mecha HAVWC é no mínimo estranha. Talvez seja só o meu bias pessoal falando: eu realmente acho muito difícil de levar o conceito de um robô humanoide gigante a sério, ao menos como máquina de guerra, então demorei um pouco para me acostumar. Dito isso, ao menos Flag certamente merece seu posto no gênero real robot: há toda uma clara preocupação sobre a física e a logística por trás de uma máquina como os HAVWC que os tornam bem mais críveis do que o de costume, e o anime até faz um bom trabalho no que diz respeito a convencer o espectador da utilidade e mesmo da necessidade de um equipamento do tipo para a missão que a equipe de recuperação da bandeiras terá de enfrentar.

O worldbuilding do anime é algo que merece elogios em si mesmo. Há algum tempo eu escrevi o texto “Criando um universo: considerações sobre mundo fictícios“, onde detalho um pouco o que eu espero de uma boa construção de mundo, e devo dizer que Flag atende a muito do que eu mais valorizo nesse aspecto. O mundo é de fato um mundo: Uddiyana não é um território isolado da realidade global; você tem as Nações Unidas intervindo, você tem jornalistas de todo o globo noticiando a guerra, e por ai vai. Ao mesmo tempo, o país é claramente um território com sua própria história e sua própria cultura, puxando claras inspirações do subcontinente indiano, evidentes sobretudo em questões como vestimentas, arquitetura, etnia da população, entre outras. E claro, a heterogeneidade interna é a própria premissa do anime: esta é, afinal, a história de uma guerra civil. Se a situação que testemunhamos em Uddiyana parece tão tristemente real isso certamente em parte se deve a como a própria Uddiyana parece tão real.
Agora, antes de avançar para as minhas últimas considerações sobre o anime, eu quero aproveitar esse parágrafo para fazer uma pequena crítica à direção da obra, em particular no que diz respeito à estética visual de Flag. Revendo alguns trechos do anime para essa review, eu não pude deixar de lembrar dos capítulos introdutórios do livro The Anime Machine, de Thomas Lamarre. Aqui, o autor defende que a principal diferença visual entre o anime e o cinema é que o segundo valoriza mais uma perspectiva de profundidade, do “entrar” no cenário tridimensional da história, enquanto que o primeiro se foca muito mais em movimento laterais. A ideia de um anime do gênero found footage era justamente uma ótima oportunidade para a história melhor emular um sentimento de tridimensionalidade, mas enquanto sem dúvida há tentativas nessa direção ao longo do anime, eu sinto que o potencial foi bastante subaproveitado. O que é uma pena, francamente falando.

Finalizando a review, é bastante apropriado que falemos agora sobre o final do anime, possivelmente o momento mais impactante da história. Isso porque o final de Flag é pior que trágico: ele é injusto. Após tudo o que passou, todo o risco ao qual se expôs, Shirasu sobrevive ao cambo de batalha apenas para morrer em um atentado terrorista quando tentava pegar o avião que a levaria para casa. Uma tragédia que o próprio Akagi comenta: tivesse ela morrido durante a missão de recuperação da bandeira, as Nações Unidas provavelmente fariam dela uma mártir, um novo símbolo de busca pela paz. Mas a forma como ela morreu a torna, quando muito, estatística: mais uma vítima da violência sem sentido que é uma guerra baseada no terrorismo. É um final que força o espectador a se lembrar que cada vítima de um ataque do tipo era, antes de mais nada, um ser humano, que teve a vida tomada justamente no momento em que menos esperava.
Dez anos depois, Flag ainda segue bastante atual. Seus comentários sobre a guerra, o terrorismo, o jogo político e a mídia bem poderiam ter sido feitos dias ao invés de anos atrás. Por um lado isso é uma mostra das qualidades da obra, mas por outro não deixa de ser um pouco triste que uma história com esses temas siga sendo ainda tão relevante. Há, claro, outras coisas que eu poderia dizer sobre o anime. Eu mal comentei dos personagens, mesmo tendo gostado bastante sobretudo dos dois protagonistas, e vale ainda deixar registrado o quanto eu adorei a abertura do anime, tanto pela sua música como pelo seu visual. Mas acho que posso encerrar a review por aqui, numa nota talvez nem tão alegre, mas que é afinal a nota na qual o próprio anime se encerra.
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1 – Flag, episódio 1.
2 – Flag, episódio 1.
3 – Flag, episódio 2.
4 – Flag, episódio 1
5 – Flag, episódio 1
6 – Flag, episódio 2
Muito bom mesmo. A premissa é interessante e a review confirmou, pra mim, que será Interessantíssimo ver o anime.
Como sou blogueiro (e chatinho rs), não pude deixar de notar dois erros menores: no quarto parágrafo, “a diferente entre o fotógrafo”; e “worldbilding” deveria ser “building”. Não tiram em nada o mérito do artigo, só mais uma tentativa de ajudar.
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Oh, grato as correções, irei editar o texto XD
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