
Próximo à antiga Kyoto vivia um monge, Myoue, dotado do incrível poder de dar vida a tudo o que desenhava. Um destes desenhos era Koto, uma coelha negra, que se apaixonara pelo seu criador. Compadecendo-se dela, uma bodhisattva oferece à Koto seu corpo, a fim de que ela pudesse se declarar. O tempo passa e Koto e Myoue acabam tendo três crianças: o humano Yakushimaru, a oni Yase, e o buda Kurama. Porém, atritos com a cidade próxima levam a família a decidir se mudar, no caso para dentro de uma das pinturas de Myoue: a Capital Espelhada, Kyoto. Tudo parece ir bem, mas logo Koto começa a sonhar com a destruição daquele mundo, e ela acredita ser por já usar o corpo da bodhisattva há tempo demais. Assim, Koto e Myoue decidem deixar a cidade, prometendo a seus filhos que um dia voltariam. O tempo passa – anos, décadas, mesmo séculos -, mas nada de ambos retornarem. Eis que um dia, porém, uma tempestade de raios parece literalmente rasgar os céus daquele mundo. Descendo à cidade, chega então uma garotinha portando um imenso martelo. Seu nome era Koto, e ela estava em busca de uma coelha negra.
Kyousougiga é facilmente uma das obras mais densas que já assisti, tanto em roteiro quanto em elementos simbólicos e alegóricos, a tal ponto que eu bem sei que nenhum único texto poderia esgotar tudo o que se pode extrair desse anime. Sua primeira encarnação foi como um ONA (original net animation) de apenas um episódio, lançado em 2011 no site Nico Nico Douga (e posteriormente também no Youtube). Em 2012 a série recebe mais 5 episódios, também no formato ONA. E finalmente, em 2013 temos a série para televisão, com 10 episódios. Em todos esses casos, a direção do anime ficou a cargo de Rie Matsumoto, mas a criação de fato é creditada a Izumi Todo: um pseudônimo para a staff do estúdio Toei Animation. Sim: Kyousougiga é uma obra da Toei, e possivelmente uma das melhores que o estúdio já fez. Visualmente espetacular, com uma belíssima trilha sonora, personagens carismáticos, e uma trama repleta de reviravoltas, esse é um anime que realmente merece muito mais atenção do que recebe. Quem ainda não viu, fica aqui a minha recomendação. Até porque, cabe aqui o aviso de sempre: spoilers a frente.

Agora, a meu ver existem três motivos distintos pelos quais Kyousougiga é tão interessante, o primeiro deles sendo o fato de que o anime é pura e simplesmente divertido. Para começo de conversa, nós temos um elenco de personagens que só podem ser descritos como carismáticos. Isso é sobretudo evidente no caso de ambas as Kotos, mas antes de entrar nisso, e para o bom entendimento deste texto, vamos primeiro entrar um pouco na questão dos nomes. Isso porque temos dois pares de personagens que partilham o mesmo nome. De um lado, temos os dois Myoues, o primeiro sendo o monge com poderes de criação, que depois de passar seus poderes para Yakushimaru adota o nome de Inari, e o segundo sendo o próprio Yakushimaru crescido, que ao receber os poderes do pai adota o nome de Myoue. Este é o caso mais fácil, e basicamente eu vou chamar o primeiro de Inari e o segundo de Yakushimaru. Infelizmente, as duas Kotos são um caso um pouco mais problemático. Ambas possuem esse como o seu nome original, e o que diferencia um do outro é a escrita. Koto (古都), a mãe, tem o nome escrito em kanjis, com os ideogramas literalmente significando “antiga capital”, ao passo que Koto (コト), a filha, tem seu nome escrito em katakana, um dos dois alfabetos silábicos do Japão (junto do hiragana). Diante disso, eu decidi meio que apenas seguir o que a maioria das análises e reviews em inglês do anime tendem a fazer, que é chamar à primeira de Lady Koto e à segunda apenas de Koto.
Explicado isso, voltemos então à questão do carisma dos personagens. Como eu disse, provavelmente as duas personagens mais imediatamente gostáveis do anime são as duas Kotos. Ambas são personagens altamente energéticas, e que por isso mesmo quase sempre tomam a cena. Lady Koto é também definida como uma esposa e mãe amorosa, que profundamente se importa com a sua família. Koto, por outro lado, é apresentada como tendo uma certa malícia infantil, mostrando completo desrespeito por regras e limites, sobretudo quando estes entram no caminho dos seus objetivos (ou da sua diversão). Obviamente, tal atitude funciona aqui porque Koto é uma criança, e uma ainda movida por um objetivo com o qual praticamente qualquer espectador consegue simpatizar: encontrar a sua mãe. E enquanto outros personagens talvez não sejam tão imediatamente carismáticos quanto as duas Kotos, eles são ainda ao menos interessantes, e conforme você os vai conhecendo e aos seus objetivos é quase impossível não simpatizar com eles em algum nível. No final, cada personagem está basicamente procurando um lugar ao qual pertencer, um onde possa se sentir bem, e o lugar que acabam encontrando é a própria família. É uma mensagem simples, mas que ainda certamente pode ressoar bem forte com boa parte da sua audiência.

Kyousougiga é uma boa história, com uma série de elementos capazes de agradar a praticamente qualquer um. Tem um pouco de ação e aventura, sim, mas também uma boa dose de drama bem executado. Tem um ritmo que as vezes soa quase como frenético, mas também sabe quando desacelerar e deixar o espetador absorver o que viu. Ao final temos o destino de literalmente todo o multiverso em jogo, ao mesmo tempo em que mantendo o foco no desenvolvimento dos personagens e das suas relações, fazendo a história soar ao mesmo tempo pessoal e épica, micro e macrocósmica. Mesmo seus elementos simbólicos mais superficiais, como Koto chegando à Capital Espelhada perseguindo uma coelha, uma clara referência ao livro de Lewis Carroll As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, provavelmente irá arrancar de boa parte da audiência acenos de “ahá, eu vi o que você fez ai”. E isso sem nem mencionar o seu aspecto visual. Sua animação é fluida e energética, garantindo ótimas cenas de ação, e os cenários do anime só podem ser descritos como um colírio para os olhos. Tudo bem, talvez nem todos concordem que ele seja assim tão visualmente espetacular, mas fato é que Kyousougiga nunca é chato de se olhar. Ponto é, mesmo em seus aspectos mais superficiais o anime ainda é absurdamente divertido. Talvez nem todos o vejam como uma fenomenal obra prima, mas dificilmente alguém o achará ruim ou entediante, e isso é um feito que certamente merece reconhecimento.
Dito isso, eu gosto do anime muito mais pelos outros dois motivos que eu o acho tão excepcional: a sua narrativa visual e os seus elementos simbólicos e referenciais. Ta, acho que aqui cabe um pequeno disclaimer, ou provavelmente correrei o risco de soar ridiculamente pedante. Em primeiro lugar, não há nada de errado em gostar de Kyousougiga – ou qualquer obra, aliás – por ser uma boa história. Eu mesmo adoro a trama e os personagens do anime. Em contra-partida, eu também não alego ser nenhum expert em simbologia ou em folclore japonês. Tão pouco tenho qualquer real conhecimento de questões como direção ou direção visual. Eu gosto muito desses elementos no anime, mas tenho plena consciência de que não entendi tudo. E, sinceramente, em parte isso é justamente o que eu gosto nesse anime. É como coloquei no segundo parágrafo: nenhum único texto poderia dar conta de explicar cada detalhe do anime, o que significa que praticamente toda nova análise ou resenha dele sempre acaba trazendo algo de novo à discussão, por menor que seja. E em uma nota lateral, parece um bom momento para dizer que o que comentarei aqui sobre esses dois elementos são os aspectos que eu julguei mais interessantes, então podem ter certeza que muito ficará de fora. E feita essa breve digressão, vamos voltar à review.

Vamos então começar com a questão da narrativa visual, basicamente porque é sobre o que eu tenho menos coisa a dizer. Sendo sucinto: Kyousougiga é uma obra que aplica com maestria a máxima cinematográfica show, don’t tell (não conte, mostre). O canal no YouTube Pause and Select tem um ótimo vídeo sobre informação visual em Kyousougiga, e eu altamente recomendo a qualquer um que assistam, mas o que é mais importante de destacar aqui é como o anime consegue transmitir muito mesmo com poucos diálogos. De caracterizações de personagens até eventos de grande importância na história, Kyousougiga pode ser muita coisa, mas expositivo definitivamente não é uma delas. O que pode vir a incomodar alguns, vale dizer. Essa é uma obra que vai exigir alguma atenção se a pessoa espera terminá-la sem uma enxurrada de dúvidas, mas ao mesmo tempo as conexões que vão surgindo mais que recompensam o espectador por essa atenção. Por exemplo, há uma cena na qual, num breve flashback, vemos Inari entregando o seu colar de contas a Yakushimaru, e é incrível o quão densa de significado é essa pequena cena. Por um lado, ela literalmente implica em Inari passando seus poderes ao filho, mas quando você tem o contexto mais geral da história você também percebe que ali Inari já começara a colocar em marcha seu plano para deixar de existir, passando o papel de deus da criação para seus filhos.
Outro momento que definitivamente merece menção ocorre bem mais para o final do anime, quando descobrimos que o coelho, sapo e macaco que vemos aparecer aqui e ali ao longo da história são, em fato, deus. Quando entrarmos na parte de simbolismos e referências eu vou dar a minha pequena interpretação para isso, mas por agora só vale mencionar o quão efetivo isso é como um twist, algo que Kyousougiga consegue fazer muito bem repetidas vezes. Há, porém, duas exceções notáveis a essa falta de exposição do anime. A primeira ocorre logo no começo, quando um narrador nos conta sobre Inari e Koto, e serve sobretudo para dar o tom de conto de fadas que permeia todo esse primeiro episódio. Já a segunda é um pouco mais problemática, e ocorre quando Inari se revela como um deus. É o único momento no qual o anime abandona qualquer sutileza apenas para ter um personagem contando a sua história de vida para todos, e o quão destoante isso é de todo o restante da obra quase me faz pensar que foi algo bastante intencional. Não que eu tenha uma teoria para explicar o porque disso nesse ponto da história, e pode muito bem ser que os roteiristas simplesmente não conseguiram pensar em maneira melhor de explicar tudo o que ainda precisa ser explicado, de forma que eu estaria apenas procurando profundidade onde realmente não há nenhuma. Em todo caso, o fato de que essa dúvida se quer existe é um testemunho do quão bem orquestrado Kyousougiga é.

E assim chegamos ao terceiro aspecto que mais me parece se destacar no anime: o seu lado referencial e simbólico. Agora, antes de maiores detalhes, cabe aqui uma pequena ressalva minha. Vendo diversas críticas e análises de Kyousougiga, eu percebi que as pessoas tendem a separar as referências que o anime faz em dois grupos: aquelas aos livros de Lewis Carroll As Aventuras de Alice no Pais das Maravilhas e Alice Através do Espelho e o que Ela Encontrou Por Lá, e aquelas à cultura japonesa de forma mais ampla, no caso sobretudo ao budismo. E o que me incomoda nessa distinção é que ela cria uma certa separação, dando a entender que os livros de Carroll não fazem parte da cultura japonesa. E, claro, tudo bem, da pra entender porque as pessoas pensariam assim. Afinal, a origem dos livros não é japonesa, nem de longe. Mas nem o é a origem do budismo, que surge inicialmente na Índia e chega ao Japão através da China! Meu ponto é: as duas histórias de Alice são bastante presentes na cultura japonesa, ou no mínimo aparecem com frequência nos animes e mangás. De adaptações mais fidedignas até obras que só tomam emprestado alguns elementos e nomes dos livros originais, eu diria que Alice ainda encontra mais ecos na cultura popular japonesa do que muitas outras obras infantis, mesmo algumas originalmente japonesas.
Em adição, isso é um detalhe relativamente bem menor, mas… As pessoas costumam comentar como Kyousougiga faz referência Às Aventuras de Alice no Pais das Maravilhas, mas a verdade é que as referências param na menina que segue o coelho a um mundo de fantasia. Alice Através do Espelho e o que Ela Encontrou Por Lá, por outro lado, recebe muito mais menções, direta ou indiretamente. Por exemplo, o próprio fato de que o espelho de Lady Koto pode abrir o portão para a Capital Espelhada, enquanto que no livro de Carroll a Alice vai parar em um outro mundo ao atravessar um espelho. Existe também o fato de que a cidade de Kyousougiga possui um padrão xadrez de distribuição de quarteirões, que pode ser uma referência ao fato que, no livro, o mundo ao qual Alice chega é um gigantesco tabuleiro de xadrez, e é sua tarefa chegar até o outro extremo dele. Mas a mais clara e óbvia referência que o anime faz ao livro se encontra no seu episódio zero, quando o narrador cita letra por letra o poema de Carroll A Boat Beneath a Sunny Sky, nomeado a partir de seu primeiro verso e que serve como um pseudo-epílogo à Alice Através do Espelho, aparecendo ao final do livro. E bem francamente, esse poema provavelmente tem mais paralelos com o anime do que qualquer outra coisa em ambos os livros.

Para começo de conversa, A Boat Beneath a Sunny Sky é um poema sobre a dor da separação. Só este fato já encontra forte paralelo na história de Kyousougiga, que começa justamente com a separação entre Inari e Lady Koto e seus três filhos, Yakushimaru, Yase e Kurama. Mas há ainda alguns paralelos bem mais específicos. Por exemplo, na segunda estrofe do poema Carroll fala sobre “três crianças que descansam próximas”, e é interessante notar como o número três é uma presença quase constante no anime. Deus é, afinal triplo: o coelho, o sapo e o macaco. Mas ele também faz parte de uma segunda tríade, junto de seus dois filhos. Yakushimaru, Yase e Kurama são os três primeiros filhos de Inari e Lady Koto, bem como compõem o “Conselho dos Três”, que governa a Capital Espelhada. Estes três ainda também casam muito bem com a penúltima estrofe do poema: “num país das maravilhas eles vivem / sonhando conforme os dias passam / sonhando conforme o verão morre”. Mas talvez os mais interessantes paralelos entre Kyousougiga e A Boat Beneath a Sunny Sky estejam não no roteiro do anime, mas sim em um lugar bem mais inesperado: a insert song The Secret of My Life. Neste caso, porém, as semelhanças apenas destacam as diferenças.
Em A Boat Beneath a Sunny Sky, a mudança das estações é uma imagem visual recorrente para indicar o distanciamento. Na terceira estrofe do poema, lemos: “há muito se apagou aquele céu ensolarado / ecos se dissipam e memórias morrem / o frio do Outono cortou Julho”. Já em The Secret of My Life, temos: “o verão se torna frio, folhas vermelhas voam / as estações mudam, mas elas não perguntam porquê / tudo parte deste labirinto, longas noites antes do amanhecer / e eu ainda tenho sua música”. E mais adiante: “e aprenda, tudo muda, algumas flores morrem enquanto outras crescem”. A alegoria da chegada do inverno é praticamente a mesma, mas percebam que a mensagem por trás de cada momento é bem diferente. Enquanto ambos os trechos trazem um ar de nostalgia, A Boat Beneath a Sunny Sky é muito mais melancólico. Para um, a separação é uma dor terrível. Para o outro, ainda que ela o seja, ela também “faz parte”. Eventualmente tudo muda, e isso não é motivo para tristeza. Essa transitoriedade, aliás, está no próprio cerne do budismo, onde o constante ciclo de morte e renascimento garante que não exista nada realmente fixo.

Ainda assim, vale também apontar que se Kyousougiga começa com uma separação, ele termina com um re-encontro. E talvez mais importante, enquanto em A Boat Beneath a Sunny Sky vê com certa ansiedade e melancolia a passagem da infância para a vida adulta, em Kyousougiga essa é a exata passagem que praticamente todo personagem precisa fazer, de uma forma ou de outra. Isso é especialmente claro no caso das três crianças – Yakushimaru, Yase e Kurama -, mas também no caso de Inari, que precisa amadurecer e aprender a não fugir de suas responsabilidades, como deus e como pai. Provavelmente seria um enorme exagero dizer que Kyousougiga é algum tipo de resposta à A Boat Beneath a Sunny Sky, mas os paralelos entre as duas obras são no mínimo fascinantes de se observar. E tão fascinante quanto são as referências a elementos mais tradicionais da cultura japonesa. A começar, é claro, com o próprio nome do anime, uma mais que óbvia referência ao Choujuu-Junbutsu-Giga, uma série de pergaminhos pertencentes ao tempo Kouzan-ji e datados como sendo dos século XII e XIII.
Os desenhos são, muitos deles, satíricos, e usam de animais antropomórficos para transmitir críticas de tom cômico à sociedade e aos costumes da época. E não faltam pesquisadores para argumentar como estes pergaminhos seriam os predecessores dos modernos mangás. Neste caso, é no mínimo interessante a forma como a arte aparece em Kyousougiga. Deus, que também é o avô, é representado, como já disse, com a imagem tripla do coelho, macaco e sapo, todos animais largamente presentes no Choujuu-Junbutsu-Giga. Inari, o pai, enquanto atuando como Myoue em Kyoto frequentemente fazias desenhos que bem lembram a arte tradicional japonesa, seu dragão inclusive lembrando um pouco aqueles das tradicionais pinturas ukiyo-e. O robô gigante Bishamaru, que possui inclusive seu próprio programa na televisão, bem poderia lembrar aos primeiros animes do gênero super robot, como Tetsujin 28-go, de 1963. E concentrando tudo isso temos a própria Capital Espelhada, ela mesma uma pintura, e também o cenário do anime que é Kyousougiga.

Seria a intenção dos autores fazer algum tipo de linha do tempo da arte japonesa, desde as antigas pinturas até os modernos animes? É difícil dizer, mas eu vou colocar que se há um estúdio que poderia fazer isso, este estúdio seria a Toei. A empresa pode ser bastante criticada atualmente, e não sem razão, mas acho que muitos não sabem o quanto ela foi importante para a animação japonesa. Seus primeiros desenhos datam do começo dos anos 1960, colocando o estúdio no marco zero daquela e que foi a época definidora da animação japonesa como a conhecemos hoje. Pelo estúdio passaram nomes como Hayao Miyazaki e Isao Takahata, que depois viriam a fundar o estúdio Ghibli. Ter um anime que é, ao mesmo tempo, um energético amalgama de tradicionalismo e inovação, como o é Kyousougiga, como uma produção original da própria Toei chega quase a ser meta em si mesmo!
Outros elementos, porém, me soam um pouco menos significativos. Digo, não entendam mal, tudo em Kyousougiga possui algum significado, mas a maioria dos elementos simbólicos se liga menos a uma mensagem maior que a obra tenta passar e mais a uma linguagem simbólica comum do Japão. Por exemplo, temos o caso da romã, símbolo quase que universal da fertilidade, e que no anime é o desenho através do qual Inari torna Yakushimaru imortal. Temos também a questão dos nomes. No Japão antigo, era comum a um indivíduo mudar de nome ao longo da vida, sobretudo quando assumia uma dada profissão. O que muito acontecia era o filho assumir a profissão do pai, e nisso ele mudaria o nome para aquele que o pai estivesse usando, ao passo que o pai tomaria um novo nome para si: uma dinâmica que muito bem explica a passagem do nome Myoue de Inaria para Yakushimaru (e para mais informações no assunto eu altamente recomendo este texto, do blog Iwa ni Hana, sobre o simbolismo em Kyousougiga). Aliás, o próprio nome Myoue é uma clara referência ao monge de mesmo nome, que viveu entre 1173 e 1232.

Dentre esses elementos mais referenciais à essa linguagem simbólica comum, porém, há um último ao qual eu gostaria de dedicar um pouco mais de tempo, que é a bodhisattva que vemos logo no começo da história. Começando pelo factual, no terceiro volume da sua série As Máscaras de Deus, subtitulado Mitologia Oriental, Joseph Campbell nos conta dois significados para o termo indiano. Em seu sentido mais antigo, o termo indicava “aquele que está a caminho da realização, mas que ainda não chegou: um Buda em suas vidas anteriores, um futuro Buda”. Mas em um sentido mais moderno – e estamos falando em “primeiro século depois de cristo” moderno -, o termo passou a designar o sábio que, mesmo tendo alcançado a iluminação, permanecesse no mundo, tornando-se assim um “farol, um guia e salvador compadecido de todos os seres” [1]. E sobre o local onde Lady Koto encontra com a bodhisattva, ele muito me lembra do conceito de Reino Buda, que Campbell, no mesmo livro, descreve como “um produto da escola Mahayana (…). Uma espécie de ponto de partida para o nirvana. E assim como existem muitos portos ao longo da costa de um grande mar, também ao longo do oceano do vazio foram criados muitos Reinos Búdicos” [2].
Mas qual seria esta bodhisattva, que observando a Terra decide dar seu corpo à Lady Koto? Parte do motivo pelo qual eu queria dedicar algumas linhas a ela é justamente para dar um pouco da minha opinião nesse assunto. Não há realmente nenhuma resposta concreta, então tudo o que eu vou falar a seguir é apenas uma hipótese, mas de minha parte, e do (assumidamente) pouco que pesquisei, ela me parece ser uma referência à bodhisattva Guanyin. Os motivos para eu desconfiar de tanto começam com o fato de que Guanyin é uma bodhisattva bastante venerada no extremo oriente, é associada com a compaixão pela escola Mahayana, e está bastante associada com a figura da lótus. Nenhuma dessas características, porém, são elementos lá muito específicos. A bodhisattva em Kyousougiga definitivamente exibe os três, dado que o anime faz diversas menções à ela como um ser dotado de grande compaixão, e quando ela aparece ela o faz sentada sobre o uma lótus, mas todos esses elementos são basicamente associados com budas de forma geral. Mas o que realmente me fez pensar que poderia ser ela a bodhisattva em Kyousougiga é o fato de que Guanyin é sempre retratada como possuindo no pescoço um colar símbolo da realeza indiana ou chinesa: três colares dourados idênticos aos que a bodhisattva em Kyousougiga usa.

Acreditem, ainda há muito mais que eu poderia falar sobre Kyousougiga, e muito mais que eu mesmo posso não ter entendido ou notado. Este é um anime fantástico, e talvez um dos melhores desta década. Uma afirmação exagerada, talvez, mas não realmente sem embasamento. Do ponto de vista mais técnico, o anime é simplesmente fantástico. Eu já comentei como sua animação é sempre fluida e cheia de energia, mas vale também apontar a sua trilha sonora. The Secret of My Life é uma das minhas insert songs favoritas de qualquer anime, e as peças instrumentais sempre ajudam a dar o tom da cena, variando do épico e fantástico até o mundano e infantil. Os personagens são muito bem desenvolvidos, cada qual passando por seu próprio arco. Yase e Kurama talvez merecessem um pouco mais de tempo, mas considerando que os criadores só tinham dez episódios para trabalhar eu acho que foi acertado concentrarem o foco do desenvolvimento em Inari, Yakushimaru e Koto. E o pouco tempo também garantiu uma história incrivelmente densa, que usa de seus visuais de maneira fenomenal, contando muito de sua história sem usar uma só palavra. Significativas ou não, as várias referências que a obra joga são sempre divertidas de pegar. E eu não poderia deixar de mencionar o fato dele ter um dos finais mais satisfatórios que já vi em um anime.
O estúdio Toei é um que constantemente recebe críticas pela qualidade da sua animação, a maioria delas realmente bem merecida. Mas nem tudo o que o estúdio produz é um lixo, e Kyousougiga é uma espécie de lembrete disso. Sendo bem sincero, eu chego bem perto de chamar a essa história de “perfeita”. Não por ela não ter problemas ou não ter onde melhorar, como eu disse alguns personagens acabaram deixados um pouquinho mais de lado do que outros dada a falta de tempo, mas sim porque os problemas que o anime tem são tão pequenos em comparação aos seus acertos que é praticamente como se eles nem existissem. Tudo bem, eu sei que nem todos irão concordar comigo, mas achei que valia a pena deixar esse breve comentário. Em todo caso, já melhor já ir encerrando por aqui. Esta já é a maior review que eu já escrevi, o que também serve de testemunho à qualidade dessa obra, que bem merecia ser mais conhecida. De longe um dos animes mais underrated que eu já assisti.
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Notas:
1 – CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus – Mitologia Oriental. São Paulo: Palas Athena. Págs. 223-224
2 – Idem. Pág. 241.
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Outros textos que podem lhe interessar:
História – A História dos Mangás
Sobre símbolos, referências e alegorias
Review – Mawaru Pengindrum (Anime)
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1 – Kyousougiga, episódio 1
2 – Kyousougiga, episódio 1
3 – Kyousougiga, episódio 10
4 – Kyousougiga, episódio 9
5 – Kyousougiga, episódio 8
6 – Kyousougiga, episódio 1
7 – Kyousougiga, episódio 1
8 – Kyousougiga, episódio 10
9 – Kyousougiga, episódio 6
10 – Kyousougiga, episódio 1
Tive uma impressão diferente. Assisti na época que saiu, e achei excruciantemente confuso e com um direcionamento duvidoso de informações apresentadas para absorção do espectador, sendo que suportei até o terceiro episódio. No entanto, realmente sempre vi, desde quando decidi assistir Kyousougiga, uma camada de originalidade desse anime em relação aos demais, então talvez graças a esse texto eu dê uma nova chance a obra com um novo olhar contextual de hoje.
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Kyousougiga é um anime que você PRECISA assistir inteiro para entender. Quando ele acaba fica até que tudo bem claro, mas até o último episódio sempre ficam várias perguntas pairando no ar. A mim não incomodou, porque eu gostei de praticamente tudo o que ele oferecia para além da história: os personagens, a animação, a trilha sonora, o visual… Foi divertido, mesmo que imensamente confuso pela sua maior parte. Mas consigo entender que quem não consiga só ignorar essa confusão acabe achando o anime confuso demais para seguir em frente. Se você for tentar rever, eu realmente recomendaria tentar só aproveitar a diversão e não se prender muito à história, que as coisas vão ficando clara aos poucos rs. Mas se ainda assim não curtir, faz parte, nem todo mundo vai ter o mesmo gosto e não vale a pena se forçar a ver algo que não estiver agradando XD
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Sim, entendo…algum dia, talvez, eu dê essa nova chance.
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Texto épico, meus parabéns! O anime realmente é fantástico, bem construído e carismático. Merecia muito mais destaque, e falo isto em escala global!
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é uma obra incrível, com certeza
o final é maravilhoso, até chorei
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