
Eu já disse isso antes em outras reviews minhas, mas acho que é algo que vale a pena reiterar: uma obra qualquer (um filme, um livro, uma série…) ser para crianças não é um demérito, e nem isso deve ser usado como desculpa para se fazer uma obra ruim. Claro, é óbvio que a logística por trás de se fazer uma obra para crianças será diferente daquela de se fazer uma para adultos: públicos diferentes implicam em conteúdos, temas, técnicas, mesmo clichês diferentes, e não há nada de errado nisso. Ainda assim, é plenamente possível fazer algo bom e memorável para crianças, e mesmo de quando em vez saem aquelas obras legitimamente “para todas as idades”, capazes de agradar e encantar a crianças e adultos. O anime foco desta review é um destes casos: não apenas um bom anime “para crianças”, Time Travel Shoujo: Mari Waka to 8-Nin Kagakusha-tachi é um bom anime (ponto).
Com um título que se traduz por algo como “Garota que Viaja no Tempo: Mari, Waka e os 8 Cientistas”, a produção de 12 episódios do estúdio WAO World tem uma origem bem curiosa: ele é baseado em um livro didático de 1983, intitulado Jishaku to Denki no Hatsumei Hakken Monogatari, cujo autor é o educador Kiyonobu Itakura. O livro faz parte de uma série sobra variadas descobertas científicas, e se foca na questão do magnetismo e a eletricidade. Já o anime, sua premissa é a da nossa protagonista, Mari, descobrindo um misterioso livro capaz de mandá-la de volta no tempo, porém apenas para algumas épocas em específico e apenas durante um curto espaço de tempo. O que chama a atenção da garota ainda mais, porém, é a possibilidade desse livro estar ligado ao desaparecimento de seu pai, três anos atrás. Infelizmente, para falar mais desse anime eu terei de entrar em spoilers, então considere este o seu aviso. Se ainda não viu o anime, fica aqui a minha recomendação para que o faça: acredite, ele vale a pena.

Agora, eu acho interessante começar apontando algo que ocorre no primeiro episódio, e que honestamente foi o que imediatamente fez eu me interessar nesse anime. Trata-se da cena em que Fuuta se distrai ao falar com Mari e Waka, e nisso uma bola de baseball vem voando em sua direção. Na vasta maioria dos animes, eu esperaria disso uma pequena gag, uma piada rápida do personagem se machucando e talvez sendo ajudado pelas meninas, ou algo do tipo. Aqui, ao acertar o peito do menino, ele sofre uma parada cardíaca, desmaia, e só volta ao normal após o irmão da Waka – que está estudando para se tornar médico e passava pelo local – aplicar os primeiros socorros. É uma cena honestamente tensa, e a expressão de horror e medo das personagens é bastante clara. Mas eu trago essa cena em particular a tona porque eu acho que ela passa uma boa ideia do que virá pela frente, no sentido de que esse é um anime que não tem receio em abordar situações, temas e ideias um pouquinho mais “pesadas”. Claro, ele nunca irá muito a fundo nisso, afinal ainda é uma obra para crianças: Fuuta acaba socorrido, e após alguns dias no hospital ele já estará bem.
Ainda assim, a mentalidade que está intrínseca aqui é a de uma obra que claramente não subestima a sua audiência, algo de suma importância sobretudo quando começa a viagem no tempo. Nem de longe essa é uma obra que romantiza o passado, e ela é bastante competente em mostrar o choque cultural que haveria se alguém do japão moderno voltasse cem, duzentos, quatrocentos anos atrás. Por exemplo, logo no começo do anime, Mari vai para a época de William Gilbert (1544 – 1603), e lá é confrontada com o machismo da época, para o qual mesmo um uniforme escolar feminino moderno seria visto como “indecente”. Já quando ela viaja para os Estados Unidos de Benjamin Franklin (1706 – 1790), Mari presencia a escravidão, aqui na forma de um garoto escravo que serve a Franklin, que a faz refletir a própria sorte de ter nascido em uma época e local onde sua maior responsabilidade é ir para a escola, ao invés de trabalhar para o seu dono. E claro, o embate entre ciência e religião é também abordado, sobretudo no começo da série, que é quando Mari viaja para épocas onde esse conflito teve os seus resultados mais severos.

Outro ponto que merece destaque são as mensagens que o anime tenta passar. Agora, eu não vou dizer que o anime é um poço de sutilezas, e algumas vezes a “mensagem da semana” pode parecer um pouco martelada. Mas é a exceção: de forma geral, o anime sabe entregar o que quer dizer. Talvez o melhor exemplo disso, fora a questão da escravidão que comentei no parágrafo anterior, é quando Mari vai para a época de Hertz. De certa forma, a lição final daquele episódio visa responder uma pergunta que muitas crianças e adolescentes fazem em tudo que é aula: para que aprender “isto”? Qual a relevância “disso” para o meu dia a dia? Mas a entrega aqui faz toda a diferença: temos o cientista, já praticamente em seu leito de morte, se perguntando para que ele fez tudo aquilo, o que atingiu e para que de fato servirá a sua pesquisa, ou se ele não estaria prestes a morrer em vão. É então que o anime mostra como as suas descobertas em última instancia levaram até a comunicação sem fio que temos hoje, em nossos tablets e smartphones, gerando uma cena que consegue ser ao mesmo tempo educativa e tocante.
Outras mensagens inclusive tendem a fugir um pouco do que você esperaria de uma obra para crianças. Em um dado episódio, Waka critica Fuuta por se dedicar demais ao futebol e de menos à escola, e ao final desse arco a grande lição vai para a Waka. É, Fuuta chega à conclusão de que ele precisará estudar mesmo se quiser ser um bom jogador de futebol, mas a mensagem última desse conflito é que não tem problema se deixar levar por aquilo que se ama. É difícil fazer uma obra para crianças, especialmente uma obra educativa, que não termine por vezes soando como o recitar mecânico de alguma cartilha, em termos das morais passadas, mas Time Travel Shoujo é um bom exemplo de como uma obra pode ser educativa enquanto ainda soando como legitimamente genuína em suas lições. E claro, eu não poderia deixar de citar a mensagem última do anime como um todo: uma visão positiva da ciência de forma geral, bem como mostrando-a como um processo fruto do tempo e dedicação de diversas pessoas. Honestamente, em um mundo onde o arquétipo do cientista ainda tende a aparecer mais como vilão do que como herói da história, uma mensagem do tipo é bastante bem vinda, especialmente em uma obra infantil.

Mas mudando o assunto, outro aspecto que eu preciso comentar sobre esse anime é um que eu nunca esperaria ser tão bem feito em uma obra para crianças: o vilão. Admitamos: obras para crianças tendem a ter uma ótica bastante maniqueísta. Mesmo muitas obras para adultos são assim. E enquanto Time Travel Shoujo não é exatamente “cinza”, seu vilão é bem longe da norma. Em fato, eu diria que é a primeira vez que eu vejo o arquétipo de “homem de negócios” feito certo. Inclusive, por boa parte do anime, Mikage não passa nem perto de um vilão tradicional, e sua ótica faz até que bastante sentido: ele financiou por anos o projeto de Hayase Eiji, o pai da Mari, e ai este decide cancelar o projeto e desaparecer sem deixar vestígios, inclusive sem entregar nada ao seu patrocinador. Para todos os efeitos, tudo que Mikage quer, ao menos a princípio, é encontrar Hayase para discutir alguma forma de compensação pelos danos financeiros que ele sofreu ao investir no projeto – ou que então Hayase lhe entregue algo que possa ser vendido. Mesmo seus métodos são surpreendentemente civilizados pela maior parte, e só mais ao final do anime é que ele se torna mais agressivo.
Pessoalmente falando, quando estamos tratando de vilões com alto poder – um chefe de estado, líder político ou militar, ou então, como no caso, um líder de uma grande empresa – eu gosto de conseguir entender como aquele personagem chegou aonde chegou. É o meu problema com vilões maniqueístas malucos, sedentos de poder e que tratam seus subordinados com punhos de aço: como diabos ele conseguiu o apoio necessário para chegar ao – e se manter no – poder?! Medo? Pode até ser, mas o medo normalmente só vai até onde começa o ódio e o rancor: e é ai que temos uma revolução. Em time travel shoujo, porém, é fácil de entender como Mikage chegou onde chegou. Além de ser um bom homem de negócios, ele é um personagem carismático, e mesmo com toda uma aura de ameaça que o ronda o espectador não pode deixar de sentir certa admiração ou simpatia por ele. Especialmente quando a obra decide que ele é um profundo conhecedor de doces, aparentemente [rs]. Detalhes assim são o que fazem um personagem soar bem mais “vivo”, e esse anime certamente consegue isso.
Outras relações certamente também merecem menção, como a da Kuroki com o Mikage (e, de novo, aqui mostra como é importante você ter um vilão que possa ser ameaçador, mas também carismático: é fácil de entender de onde vem a admiração e o carinho que ela sente por ele, e soa mesmo bastante genuíno), do pai e da mãe da Mari, e mesmo da mãe da Mari com a menina. O elenco aqui não é exatamente enorme, mas o anime faz um ótimo trabalho em mostrar as diferentes dinâmicas e interações entre os variados membros desse elenco, e diria mesmo que essas interações são por vezes mais interessantes até que os personagens em si. Um bom exemplo disso é o próprio romance: nem a Waka nem o Fuuta são particularmente interessantes como personagens, mas a forma como interagem é simplesmente fofa demais para não se importar, por mais clichê que seja [rs].
Graças a isso, aliás, o anime consegue ter um roteiro surpreendentemente bem fechado, construindo uma série de mistérios ao longo dos seus 12 episódios para afinal entregar uma ótima conclusão que consegue responder a praticamente todas as perguntas levantadas. Claro, isso não é dizer que a história não tenha suas pequenas inconsistências. Por exemplo, vezes demais a Mari aparece ou desaparece em frente a uma grande multidão de pessoas, além de sempre deixar claro para todos os cientistas que visita que ela é uma viajante do tempo. E o anime espera que você acredite que isso nunca causou nenhum tipo de mudança no passado, ninguém nunca comentou ou noticiou uma garota sumindo na frente de dezenas de pessoas, e nenhum cientista nunca disse nada… É um nitpicking, sim, mas um que eu só faço porque, honestamente, o restante do anime é tão bem fechado e tão verossímil dentro do que se propõe que chega a ser até um pouco estranho como ele nunca tenta colocar alguma restrição quanto a isso. Mas bom, acho que é pra casos assim que existe a suspensão de descrença, afinal [rs].

Na sua parte técnica, Time Travel Shoujo é bastante competente. Honestamente, eu não tenho muito o que falar da sua animação: ela é boa, mas não boa ao ponto que dê para comentar algo a respeito. Sua parte sonora, porém, merece algum destaque, e eu sobretudo adoro a musica que usam para os momentos de maior impacto, e como ela consegue trazer exatamente isso à cena: impacto (infelizmente, no momento que escrevo esta review o nome da dita música ainda não foi divulgado… mas é a musica que toca, por exemplo, quando Mari volta da época de Gilbert no episódio 2. Ou, mais fácil ainda: é a musica que toca no PV do anime). Já a estética é algo que eu queria comentar brevemente, basicamente porque: podemos reconhecer por um segundo como esse anime parece algo recém saído do começo dos anos 2000? Eu não sei se mais gente chegou a pensar isso, mas eu juro que é a impressão que tive vendo esse anime [rs].
Considerações finais, Time Travel Shoujo é um ótimo anime. Uma experiencia gostosa e divertida, capaz de entreter realmente a toda a família. Do ponto de vista educativo ele é bastante competente, trazendo de forma lúdica diversos conceitos da física (sobretudo, claro, do magnetismo e da eletricidade), bem como da história da ciência. É, afinal, uma obra sobre o desenvolvimento cientifico, como ele se dá e quanto tempo pode levar, bem como pode estar envolto em conjunturas históricas muito mais complexas, que o afetam diretamente. Já enquanto uma história em si, é uma obra com um bom roteiro e personagens que são pelo menos carismáticos o suficiente para você querer ver mais deles. É como eu disse: ser “para crianças” – e aqui eu agora acrescentaria “ser educativo” – não é desculpa para fazer algo ruim, e obras como Time Travel Shoujo mostram que é possível fazer uma história divertida e interessante enquanto ainda atingindo o público mais jovem e passando as lições que precisa passar.
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Anime e mangá são coisas de criança?
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1 – Time Travel Shoujo, episódio 1
2 – Time Travel Shoujo, episódio 1
3 – Time Travel Shoujo, episódio 1
4 – Time Travel Shoujo, episódio 6
5 – Time Travel Shoujo, episódio 3
6 – Time Travel Shoujo, episódio 3
7 – Time Travel Shoujo, episódio 3
Mesmo tendo dropado Time Travel Shoujo no episódio 05, não nego que é um ótimo anime e a maior qualidade que identifiquei foi sua ‘Fidelidade com a Proposta’. O anime tem seu público alvo definido e o caráter educativo, entretanto dentro das limitações que criativas que poderia ter, os roteiristas/diretores souberam tornar tudo dinâmico, divertido e envolvente. Um exemplo disso são os próprios diálogos expositivos, que com um pouco de leveza de minha parte, considero-os orgânicos. Sobre as aparições repentinas, eu não me incomodei, mesmo por que servia como comédia. Eu dropei o anime pelo desinteresse nos próximos cientistas mesmos, rsrs, mas se até hoje não terminei Evangelion, vai ser difícil retornar a vê-lo :v. Apesar de não recomendá-lo efetivamente ao público otaku em geral, vou sempre me recordar do mesmo como um exemplo de qualidade tanto relativa, quanto absoluta!
Fiquei surpreso pela review, tinha muito mais qualidades que eu perdi não vendo até o final.
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