
É curioso como, quando discutindo sobre animes, a trilha sonora raramente recebe lá muita atenção. Isso talvez se deva ao fato de que, ao contrário de elementos como animação, desenvolvimento de personagem e consistência no roteiro, as “regras” pelas quais avaliar a trilha sonora nunca ficaram exatamente claras. Enquanto podemos discordar sobre se personagem X ou Y foi bem desenvolvido ou não, ou se animação deste ou daquele anime foi competente ou não, nós ainda temos em mente um talvez-nem-tão-pequeno set de características que compõe o que seria um personagem bem desenvolvido ou um anime bem animado. Mas explicar conceitualmente o que faz uma boa trilha sonora é algo bem mais nebuloso, e talvez por isso a maioria das vezes que alguém comenta sobre a trilha sonora de uma obra a análise inevitavelmente cai em impressionismos como “é boa”, “é bela”, “é ruim”, e por ai vai (e é, eu certamente não sou imune a isso, muitíssimo pelo contrário).
Dito isso, eu honestamente acredito que a trilha sonora é um dos aspectos mais importantes de um anime, podendo facilmente tornar até a pior das histórias ao menos um pouco mais palatável – quando bem utilizada -, ou fazendo até a mais belíssima animação parecer “vazia” e “inacabada” – quando mal utilizada. E para explicar o porque disso, eu quero deixar claro aqui o que eu acho que faz uma boa trilha sonora: ela ser notável. Isto é, uma boa trilha sonora deve ser percebida pelo espectador, e para além disso a sua presença ali deve ser complementar à cena. Em outras palavras: a trilha sonora deve ser parte integrante da cena em questão, e significativamente impactar na forma como a percebemos. Se uma cena passa exatamente as mesmas ideias, impressões e sensações no mudo do que quando com o som ligado, então temos aqui um mal uso da trilha sonora. Mas para ir mais a fundo nisso, talvez alguns exemplos sejam o melhor caminho.

Logo no começo do primeiro episódio de Shin Sekai Yori [review], temos uma cena que eu acho que bem mostra o efeito que uma boa trilha sonora pode ter. Trata-se de um momento no qual a protagonista, Saki, está sendo levada de barco, através de um rio estreito, com folhagem nas margens. A cena acontece à noite, e a iluminação é claramente a luz de velas. É um cenário que, por si só, parece um tanto quanto opressor, especialmente quando o anime faz questão de apontar que ele se passa mil anos no futuro, ao passo que tudo o que vemos mais parece pertencer ao distante passado. Mas é o complemento da trilha sonora que faz a cena ter o impacto imediato que ela tem. A música Kage no Denshouka Dai Ichibu, que toca por toda a sequência, adiciona a ela um tom de misticismo, buscando causar no espectador um sentimento de intimidação, sim, mas também de um respeito quase que religioso: em boa parte a forma como aquela sociedade – e, por extensão, a nossa protagonista – vê o Cantus, o poder telecinético que os humanos desenvolveram.
É uma cena que diz muito sobre aquele mundo e sobre aquelas pessoas, e a música é parte fundamental nessa comunicação. E vale dizer: Shin Sekai não é o único anime a conseguir um efeito do tipo. Um exemplo talvez muito mais conhecido seja o do filme animado de 1995 Ghost in The Shell. Na sua sequência de abertura, na qual vemos a montagem do modelo de ciborgue que a protagonista, a Major, usa, temos o acompanhamento da música Making of a Cyborg, que passa muito das mesmas sensações das descritas sobre a cena em Shin Sekai Yori. Claro, aqui com um propósito bem diferente. Se em Shin Sekai música e imagem se complementam, em Ghost In The Shell ocorre uma dissonância: temos a fabricação da mais alta tecnologia acompanhada de uma música que mais parece pertencer ao distante passado. Obviamente isso não é sem propósito, e esse contraste entre passado e futuro muito ressoa no tema geral do filme do contraste entre o homem e a máquina. O que só mostra, no final das contas, as diferentes funções que a trilha sonora pode ter em uma dada cena.

Mas se em uma cena o impacto de um bom uso da trilha sonora já pode ser sentido, a coisa se torna ainda mais clara quando consideramos a série como um todo. Retomando o exemplo de Shin Sekai Yori, o anime de forma geral consegue manter uma constante sensação de tensão e insegurança, justamente o motivo pelo qual ele é considerado uma obra de horror (vale lembrar: horror é diferente de terror, sendo muito mais focado nesses sentimentos – medo, insegurança, ansiedade, etc. – do que em dar sustos). E muito dessa sensação se deve inteiramente à sua trilha sonora, que consegue fazer até uma conversa entre alguns personagens parecer ameaçadora, como se algo de muito ruim fosse acontecer a qualquer momento. Claro, muito do porque essa sensação de tensão constante funciona no anime se deve ao fato de que, muitas vezes, de fato algo de muito ruim acontece, nos dando uma satisfatória resolução para uma longa construção. Ainda assim, a importância da trilha sonora nesse contexto certamente não deve ser minimizada.
Já um exemplo um pouco mais recente que definitivamente merece menção vem com o anime Fune wo Amu. Em fato, não seria exagero dizer que o anime só funciona graças à sua trilha sonora. Exagero de minha parte? Bom, para quem não sabe, Fune wo Amu é um slice of life que se passa num pequeno departamento de uma editora japonesa, departamento esse especializado em dicionários. Todo o plot guia da obra é a criação de um novo dicionário, “A Grande Passagem”, embora a obra trabalhe muito mais as relações e socializações entre os seus personagens. Em todo caso, essa é uma premissa que poderia facilmente se tornar um tanto quanto tediosa bem rápido, mesmo que muito bem executada. Mas o anime usa de uma trilha sonora que constantemente busca fazer alguns momentos soarem como grandiosos e “épicos”. E funciona! O espectador consegue se sentir investido no que acontece, partilhando muito do ânimo e excitação dos personagens. O resultado é uma experiência estimulante do começo ao fim, enquanto ainda madura e realista: uma combinação que só foi possível graças à sua trilha sonora.

Vale dizer, eu poderia citar diversos outros exemplos ainda, de cenas específicas a animes inteiros. Em Mawaru Penguindrum [review], a cena de Shouma e Himari dividindo a maçã ao som de Unmei no Ko-tachi é uma que ainda mantenho na memória como uma das mais bonitas do anime, ao passo que se existe ao menos uma coisa boa em NHK ni Youkoso é a sua mais que excelente trilha sonora. E talvez o meu aspecto favorito de toda a franquia Digimon é o esforço colocado em criar trilhas sonoras memoráveis para cada série (bom, com exceção de Digimon Universe: Appli Mosnters). Já em tempos mais recentes pudemos ver o efeito de uma boa trilha sonora ao final tanto do episódio 15 como do episódio 18 de Re:Zero Kara Hajimeru Isekai Seikatsu.
Música é uma das mídias mais antigas da história humana, presente entre nós mesmo antes da invenção da escrita. E desde muito cedo se sabia de uma capacidade bastante intensa da música: a de despertar certas emoções. Talvez seja só comigo, mas eu sinto que uma boa música faz muito mais para passar determinado sentimento ou emoção do que o visual, por mais competente que seja esse visual. E, falando sem qualquer propriedade que seja, talvez seja por isso que mesmo na era da mídia áudio-visual, onde imperam filmes, séries e desenhos, a música ainda se mantém firme e forte como um meio de entretenimento, de expressão, e como industria. Há quem diga que justamente por isso usar em demasia da trilha sonora é uma pequena “trapaça”, “forçando” certas emoções a despertar em cenas que, sem a música, elas não despertariam. Mas eu vejo isso como exatamente o ponto de se ter uma trilha sonora: ela é uma ferramenta que, quando bem utilizada, pode trazer resultados incríveis, e acho que tanto melhor quando isso ocorre.
Diferentes cenas irão pedir diferentes músicas. Diferentes tons irão pedir diferentes músicas. O que o autor quer passar. De onde vem a música: se ela é diegética (isto é, surge de dentro da obra), ou se vem “de fora” daquele mundo. Uma composição que funciona em uma cena não irá funcionar em outra, e assim vai. Isso eu acho que todos podemos entender e concordar, mas eu digo que independente de tudo isso, a trilha sonora será tão melhor quanto ela for funcional. Efetiva. Presente. Porque se eu coloco o episódio no mudo e absolutamente nada muda do ponto de vista das emoções, sensações e ideias transmitidas, então aquela trilha sonora é literalmente inútil. O que a língua inglesa chama de white noise, um som de fundo que existe tão somente porque o silêncio pleno seria “estranho”. Mas quando a música é, de fato, parte integrante da narrativa, ai sim, temos uma boa trilha sonora.
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Imagens (na ordem em que aparecem):
1 – K-ON!!, episódio 24
2 – Shin Sekai Yori, episódio 1
3 – Ghost In The Shell (1995)
4 – Fune wo Amu, episódio 1