Ergo Proxy – Raison d’Être e o Sentido Existencialista da Vida.

Ergo Proxy // Análise 30/10/2014 // 1
A cidade construída em um domo: Romdeau City

Chegando às televisões japonesas no ano de 2006, produzido pelo estúdio de animação Manglobe e dirigido por Shuko Murase (à época já tendo sido responsável por, entre outros projetos, o anime Samurai Champloo), Ergo Proxy foi, de modo geral, bastante aclamado. A história se passa no distante futuro, onde as condições climáticas e naturais da Terra se tornaram tão contrárias à vida que a espécie humana foi forçada a viver em Domos, enormes cidades construídas dentro de redomas climatizadas. Nesta cidade vive Re-L Mayer, investigadora incumbida de investigar uma série de assassinatos aparentemente relacionados com a incidência do vírus cogito, um vírus que dá aos AutoReivs (robôs autômatos de aspecto antropomórfico) a consciência, fazendo com que se rebelem contra as ordens de seus senhores humanos. Após ser chamada para investigar um caso desse tipo, Re-L presencia a existência de uma criatura estranha, de forma humanoide e incríveis habilidades sobre humanas, que depois a personagem viria a reconhecer como sendo um Proxy. Ao longo da história, seguimos a tragetória de Re-L em sua tentativa de entender o que são os Proxys, o que a leva em uma jornada pelo mundo devastado que a fará repensar os seus conceitos do mundo externo ao domo em que nasceu.

E agora eu deixo aqui os avisos de sempre: a postagem conterá spoilers, especialmente alguns spoilers referentes ao  final do anime. É altamente recomendado que se assista ao anime antes, não apenas para evitar levar spoilers como também para ter um melhor entendimento das coisas que falarei aqui. O anime tem apenas 23 episódios e certamente vale a pena ser visto. Isto dito, se você não pretende ver ao anime ou não se importa em levar spoilers, sinta-se a vontade para continuar. E aos que continuarem, eu desejo uma boa leitura ^-^

Ergo Proxy é certamente uma dessas séries que merecem o título de “filosóficas”. Ao longo da obra, o anime toca em diversas questões bastante sensíveis: “qual a minha função na sociedade?”, “qual o meu valor enquanto ser vivo?”, “o que me distingue de uma máquina?”, entre várias outras. Uma delas, porém, perpassa a toda a série, e é a que discutirei aqui. A pergunta que considero ser o ponto axial de Ergo Proxy: “qual o sentido da vida?”. Ou, ainda, uma pergunta que deriva diretamente desta: “uma vez que eu perca aquilo que dava sentido à minha vida, o que me resta fazer?”

Agora, vamos começar do começo. A simples pergunta “qual o sentido da vida” já foi bastante discutida ao longo de um largo período de tempo, desde os tempos antigos até a modernidade. De fato, a pergunta é tão largamente usada que a wikipedia tem uma página somente para as diferentes visões, da filosofia à religião e ciência, sobre qual seria o sentido da vida. Todas estas diferentes perspectivas visam a responder aquilo que a filosofia viria a chamar de “absurdismo“: o fato de que o ser humano continuamente busca por um sentido claro para a sua existência, mas não é capaz de encontrá-lo, vivendo sempre na angustia de viver sem saber porque. Ergo Proxy, porém, trata desta questão de uma forma bastante peculiar, isso por conta de um pequeno detalhe: a série já começa com a questão respondida.

Conforme a série vai se desenrolando, o espectador entende que cada pessoa, máquina e “coisa”, naquele mundo, tem uma função clara, um “lugar no mundo”, se preferirem. A começar pelos seres humanos, o fato de todos viverem em um domo, com espaço obviamente limitado, torna necessária uma forma bastante drástica de se garantir a sobrevivência da coletividade e o não esgotamento dos recursos do domo. Essa forma é a geração artificial de humanos, com todos os cidadãos do domo tendo nascido de úteros artificiais. Aproveitando-se deste método, ainda, a sociedade desenvolveu uma forma de lidar com qualquer potencial risco à vida em conjunto no domo: mesmo quando ainda estão nestes úteros, os fetos que formarão os futuros cidadãos da cidade têm incuto em si o desejo de se tornarem “bons cidadãos”. Já em sua vida adulta, os cidadãos do domo encontram uma sociedade rigidamente hierarquizada. No topo desta está o Regente, Donov Mayer. Idoso já desde o começo do anime, ele fala por meio de seus quatro AutoReivs, construídos na forma de estátuas renascentistas, cujo único propósito é garantir a estabilidade da sociedade dentro do domo. Já no outro extremo da hierarquia social temos os imigrantes, humanos vindos de outros domos. A estes são reservadas as tarefas menos glamourosas, por assim dizer, ao menos até que se comprovem como bons cidadãos e recebam algum tipo de promoção.

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No mundo de Ergo Proxy, mesmo os seres humanos são artificialmente gerados

Os AutoReivs, por sua vez, tem a função clara de obedecer e seguir ao seu dono humano. Robôs autômatos, eles se mostram incapazes de contrariar as ordens de seus senhores, ao menos até o aparecimento de um misterioso vírus. Denominado no anime de “vírus cogito“, em uma clara alusão à frase descartiana “penso, logo existo” (cogito ergo sum), este “vírus” dá ao AutoReiv uma consciência de si mesmo enquanto ser, enquanto mais do que  simplesmente uma máquina. Justamente por conta disso, AutoReivs infectados são vistos como perigosos, capazes não apenas de fugir de seus senhores, mas também de assassinarem humanos conforme procuram fugir. Nem todos, porém, agem desta maneira, o caso mais interessante para a análise sendo o de Iggy, AutoReiv da nossa protagonista, Re-L. No seu caso, ele é infectado bem cedo na série, mas não deixa isso transparecer até bem depois, ainda assim só o fazendo para que pudesse forçar sua dona a retornar ao domo, onde ele acreditava ser o local ideal para ela. O motivo disto é bastante simples: ele não conhece outra forma de viver que não obedecendo à sua dona. Apesar de mostrar uma raiva e mágoa profunda contra Re-L, ele ainda prefere ser destruído a permitir que ela o fosse, basicamente por ele ver no obedecê-la a sua única razão de viver. Existem outros exemplos na série, embora nenhum tão forte, além de quase todos os demais serem referentes a AutoReivs não infectados, mas para os propósitos desta análise este já basta.

Os proxys, por sua vez, são um caso relativamente a parte. Originalmente, foram criadas 300 destas criaturas de aparência humanoide, com poderes sobre humanos, pelos humanos que habitavam a Terra. O objetivo destes era deixar os Proxys cuidando do planeta enquanto a espécie humana deixava o mundo até que ele se recuperasse, voando espaço sideral afora. Entre as atribuições de um proxy estavam a criação e manutenção dos domos, com cada proxy oferecendo de sua energia para garantir a existência de seu domo. E, na maior parte dos proxys apresentados, é exatamente o que eles fazem… por algum tempo. Eventualmente, e por razões não lá muito bem explicadas, a humanidade vai decaindo mais e mais e cada vez mais os domos vão ficando vazios, ao ponto de que dos poucos domos mostrados na obra o de Re-L se mostra como sendo o único ainda habitado. O resultado disso é que a maioria dos proxys vão completamente à loucura, sentindo-se solitários e psicologicamente instáveis, embora ainda bastante apegados ao domo que uma vez protegeram e mantiveram. As únicas exceções a isto, fora nosso segundo protagonista Vincent (o Ergo Proxy), são Proxy One e Monad Proxy, com ambos ainda aparentando algum grau de lucidez. Ambos, porém, tem um modo de pensar bastante semelhante àquele já descrito para o caso de Iggy, preferindo a morte a perderem a sua razão de existir.

Conforme o anime se desenrola, ficamos sabendo que os Proxys não são capazes de sobreviver ao céu azul. No momento em que a luz do sol os toca, seus corpos literalmente evaporam pura e simplesmente. Proxy One vê isso como um elemento fundamentalmente cruel de suas naturezas: uma vez que os Proxys cumpram a sua tarefa na Terra e esta volte a se estabilizar, com o retorno da luz do sol, os proxys serão naturalmente eliminados. Sabendo disto, ele decide, em primeiro lugar, pelo fim de toda a humanidade, como sua forma de vingança contra os humanos que o criaram. E, em segundo lugar, opta por seu próprio fim, tendo criado ao Ergo Proxy com o único propósito de que este o matasse. Monad Proxy, por sua vez, se mantém fiel ao seu “programa” original, aceitando perecer uma vez que percebe que a tarefa dos proxys foi cumprida. Em ambos os casos, o fim de seu propósito de existência leva a ambos os proxys a escolherem a morte.

Em todos os casos citados, mantém a constante do personagem incapaz de aceitar uma vida sem significado claro. E, em todos os casos, os personagens preferem a própria morte do que aceitarem viverem no “absurdo” (segundo aquela concepção filosófica já mencionada). Tal decisão se mostra conforme uma das primeiras proposições do filosofo Soren Kierkegaard. Ao tratar do problema do “absurdo” na vida humana, desta confrontação entre a necessidade humana de encontrar sentido na vida e a inexistência de qualquer sentido objetivo nesta, o filósofo aponta que uma das saídas possíveis seria o suicídio (em suma, a preferência pela morte do que por uma vida sem sentido claro). Kierkegaard, porém, rejeita que esta seja a opção adequada. Para ele, cada pessoa deveria procurar criar o seu próprio sentido para vida, subjetivo e pessoal, ao mesmo tempo em que deveria acreditar na existência de um mundo em que o problema do absurdo seja plenamente resolvido (em suma, o pós vida). A essa necessidade de fé em um mundo livre do “absurdo” os leitores de Kierkegaard chamaram de “salto de fé“. Outro autor, Jean-Paul Sarte, oferece a noção de que a existência precede a essência, de forma que o sentido da vida não é algo dado, mas sim construido por cada um conforme vivemos. Estes filósofos, bem como muitos outros, integram uma corrente hoje chamada de “existencialista” que, num modo geral, aceita esta noção de que a vida não possui qualquer sentido ou objetivo claros e que, portanto, cada ser humano é capaz de criar o seu próprio sentido para vida. Qualquer um que deseje uma melhor explanação da temática do existencialismo eu recomendaria o vídeo Introduction to Existentialism, do canal no youtube “academyofideas”. E por que, o leitor pode perguntar, são esses filósofos existencialistas relevantes para o entendimento do anime Ergo Proxy? Bom, realmente por uma série de razões, especialmente vindas dos personagens humanos.

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Vincent: Ergo Proxy, o Agente da Morte

Como eu mencionei antes, a maioria dos seres humanos de Romdeau, a cidade de Re-L, são criados para serem bons cidadãos. Alguns deles, porém, tomam caminhos e decisões que contrariam à ordem instituída, a exemplo de Raul Creed, inicialmente leal ao sistema estabelecido em Romdeau, mas que termina por virar-se contra ele. Daedalus, também, é outro caso relevante. Apaixonado por Re-L a um nível obsessivo, ele transforma Re-L em seu único propósito de existência, chegando mesmo a criar um clone da Re-L para si mesmo (para seu azar, o clone, criado a partir das células de Monad Proxy, pouco se importa com ele e termina por deixá-lo para trás quando a cidade começa a ser destruída). De certa forma, em ambos os casos (além de alguns outros ao longo da série, aqui não mencionados) vemos a conformação daquilo que Kierkegaard colocava como a resposta ao problema do absurdo: criar para si mesmo um propósito em sua vida e devotar-se completamente a este propósito subjetivo. Em ambos os casos, porém, os personagens terminam mortos quando suas razões de existência se mostram apagar-se (embora, no caso, não por escolhas próprias, mas sim pela ação de forças completamente externas a eles). Eu ainda poderia citar o caso de Re-L. Sendo uma personagem que vive pela máxima “não fugirei da verdade”, nossa protagonista se mostra questionadora e desafiadora do sistema em que vive, chegando mesmo a deixar o domo contra as ordens de seus superiores, movida por um forte desejo de entender mais sobre os proxys. Ela, porém, não mostra criar ou seguir qualquer tipo de propósito para sua vida, literalmente agindo conforme bem entender e fazendo o que bem quiser. Mas existe um outro caso que é bem mais elucidativo do caráter existencialista de Ergo Proxy, e este é o caso de Vincent.

Agora, eu já citei ele algumas vezes no texto, mas se por acaso você ainda não foi consultar a wikipedia para entender quem diabos é esse cara, aqui um rápido resumo: originalmente se apresentando como um imigrante, Vincent logo percebe que tem pouca ou nenhuma memória de seu lugar de origem. Além disso, ele se mostra fortemente relacionado com os proxys, por algum motivo. Conforme a série anda e ele vai tentando entender quem ele é, Vincent descobre que é ele próprio um proxy criado por outro proxy, tendo o título de Ergo Proxy, o Agente da Morte, título este claramente relacionado com o propósito para o qual foi criado: matar Proxy One. Uma vez que sua tarefa enquanto indivíduo é executada (em suma, ele vence proxy one) e também sua tarefa enquanto proxy é cumprida (a Terra está se recuperando e os domos já não são mais necessários), ele se vê confrontado com o mesmo dilema dos outros personagens: que lhe resta fazer agora que perdeu sua raison d’être? Bom, inicialmente a morte se mostra como uma oferta tentadora. Monad Proxy lhe oferece a mão para que ambos possam voar juntos em direção ao sol, aceitando perecer num mundo que já não precisa mais deles (ou seja, o suicídio como forma de deixar o “absurdo”, como Kierkegaard já mencionava). A meio caminho, porém, Vincent lembra-se de Re-L, por quem desenvolveram uma paixão. Rejeitando, então, a oferta de Monad, Vincent volta à Terra, decidido a viver junto a Re-L. O anime, assim, encerra justamente com uma nota existencialista. Uma vez tendo perdido seu propósito na vida, nosso “segundo protagonista” encontra justamente outro propósito ao qual possa se dedicar integralmente, exatamente a resposta que os filósofos do existencialismo insistiam como sendo a correta.

Imagens (na ordem em que aparecem):

Ergo Proxy. Episódio 1 – Pulsação do Despertar/Awakening

Ergo Proxy. Episódio 7 – Re-L 124C41+

Ergo Proxy. Episódio 23 – Proxy/Deus Ex Machina

26 comentários sobre “Ergo Proxy – Raison d’Être e o Sentido Existencialista da Vida.

  1. parabens, realmente é a melhor avaliacao ate agora. me ajudou a entender um monte de coisas.
    quando Proxy One diz que proxys sao “intermediarios” entre os humanos e o criador, brinca-se com a definição tecnica de um proxy em informatica, mas também os compara a imagem de anjos. Anjos que teriam sido deixados tomando conta da humanidade apos sua criacao por (Deus?) . se entrarmos por este caminho de mitologia religiosa judaico-cristã, teremos que levar em consideração que “aquele que leva a luz” é Lucifer, ou o anjo da morte.
    VSF ergo proxy, explodindo cabeças!

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  2. Gostei da análise, mas uma coisa que não ficou muto clara nissao tudo é porque o Vincent foi pra Moscou, não da vez que foi junto com a Re-L e a Pino que foi a segunda, mas da primeira, porque la ele deve ter vivido uns tempos e depois descartou as memórias antes de voltar a Romdo onde ele foi regeitado como imigrante, mas porque ele foi mandado pra Moscou pra inicio de conversa ? Será que era tudo parte do roteiro que o Proxy One colocou na “raison d’etre” de Vincent ?

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    • Eu meio que vejo onde eu conseguir achar. Os meios legais para se assistir animes são basicamente o Crunchyroll e o Netflix, mas ambos tem um catálogo super limitado, então acabo meio que forçado a procurar via google mesmo rsrsrs

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