
A palavra “mangá” já está praticamente incorporada no vocabulário ocidental. Quer você, leitor, goste ou não de ler mangás, muito poucos serão aqueles que dirão que não sabem o que são estes “quadrinhos japoneses”, como é popularmente definido o mangá no ocidente. Mas se a maioria sabe dizer com bastante precisão onde eles surgiram, dizer quando surgiram é uma história bastante diferente. E, verdade seja dita, mesmo estudiosos do assunto tem dificuldade em concordar a respeito desta questão. Dependendo do autor que o leitor pegar, poderemos encontrar uma espécie de “linha evolutiva”, contínua, que vai desde os primeiros pergaminhos japoneses até os atuais mangás, em uma janela de tempo que pode ser tão ampla quanto o autor desejar. Outros, porém, serão mais estritos, apontando que o mangá tal e qual conhecemos hoje nada mais é do que fruto do momento pós-segunda guerra, quando os Estados Unidos ocupavam o Japão e quando a influência ocidental teria entrado de forma muito mais forte no país.
Ambos os lados, porém, concordam em um ponto: após a Segunda Guerra Mundial, algo mudou na forma de fazer quadrinhos no Japão. O pioneirismo e experimentalismo de alguns autores, dentre os quais se destaca sempre a figura de Osamu Tezuka, bem como de algumas revistas, como a importante Garo, fizeram surgir no Japão algo que o mundo não havia visto até então. Algo que se popularizaria para além das expectativas de qualquer autor individual, que transpassaria barreiras linguísticas, culturais e nacionais para se tornar conhecido e reconhecido no mundo inteiro. Algo que viria a influenciar quadrinistas, designers e artistas num geral, do extremo oriente ao extremo ocidente. Mas por que? Por que algo assim surgiu onde surgiu? E por que se tornou tão popular? Pois bem, isto é exatamente o que irei tratar neste post.
Antes de começar a jogar fatos e nomes na cara dos leitores, porém, eu gostaria de deixar claro o que será coberto aqui. Por mais que eu adoraria tratar do tema indefinidamente, acho que ninguém tem intenção de ler uma bíblia, não? Assim, para não fazer disto um post ridiculamente gigante para além do necessário, optei por parar as explanações no próprio Japão. Ao longo dos próximos parágrafos, pretendo mostrar como surgiu, evoluiu e se produziu aquilo que nós, hoje, conhecemos como “mangá”, parando o texto quando os diferentes gêneros de mangá já estão mais ou menos definidos. Eu não irei tratar sobre o avanço do mangá para além das fronteiras japonesas, algo que fica para um possível post futuro. Para além disso, eu também não entrarei em detalhes sobre cada um dos diferentes gêneros e demografias do mangá, me limitando a apenas, em grande parte, constatar sua existência. Isto dito, eu possivelmente irei, sim, voltar no tempo bem mais do que o que seria considerado “ideal”, mas tentarei ser breve neste ponto, que tem lá sua importância para o quadro geral que o leitor verá ser pintado aqui. Isto dito, e sem mais delongas, vejamos agora como nasceu, cresceu e se desenvolveu um dos estilos de história em quadrinhos mais influente e popular do mundo: o mangá. Peguem suas pipocas e refrigerantes, deixem uma musiquinha de fundo e vamos que vamos.
Começamos essa pequena viagem ao passado em um templo. Fundado em 607 d.C., o templo Horyu-ji teve de ser reconstruído no século oitavo por conta de um incêndio que o destruíra. O que isto poderia ter a ver com histórias em quadrinhos dos séculos XX e XXI? Bom, em seu artigo “Mangá in Japanese History”, primeiro capítulo da coletânea Japanese Visual Culture, Kinko Ito cita que em 1935 foram encontradas espécies de caricaturas que retratavam de pessoas a animais. E este não é um caso único, com Ito apresentando um caso similar que teria ocorrido no templo Toshodai-ji, cuja fundação data de 759 d.C., a fim de concluir que a confecção de caricaturas com fins humorísticos era um passatempo comum no Japão da época. Isso é importante de ser ressaltado e eu vou dizer porque em seu devido tempo, por hora apenas mantenha essa informação no cantinho da sua mente, obrigado.
Com isso, avancemos agora um pouco no tempo, até o período que vai de 1053 até 1140 d.C. Este foi o intervalo entre o nascimento e a morte do monge Toba Sojo (e se você for do tipo que deu uma risadinha contida lendo esse nome, eu seriamente acredito que você é muito novo para continuar lendo este texto). Astrônomo e artista, Toba ficou famoso entre historiadores do mangá por conta de uma série de caricaturas que ele teria feito, muitas das quais críticas claras às classes mais altas, que eram retratadas como os mais diferentes animais a cometerem as mais diferentes depravações, tudo isto com um toque de humor ácido. Em fato, sua popularidade se tornou tão consagrada no meio artístico japonês que, aponta Ito, o período Hoei (1704-1711) veria surgir as populares toba-e, caricaturas de teor cômico de eventos cotidianos. Não se prendam muito, porém, a estes nomes e datas: o que importa aqui realmente é observarmos o quão enraizada a tradição da caricatura de teor cômico já se encontrava no Japão do período.
Obviamente, porém, os artistas japoneses não se limitavam apenas a caricaturas de teor cômico. Obras mais sérias também foram surgindo no Japão. Exemplos disso poderiam ser as Jigoku-e, imagens voltadas para crianças, que usavam de caricaturas para ensinar alguns dos preceitos do budismo. Outro exemplo, ainda, e este um pouco mais relevante para a história que irá se desenrolar alguns parágrafos a frente, seriam os akahon, livros de imagens, normalmente com capa avermelhada (dai seu nome, “Livro Vermelho”), que contavam desde contos de fadas a contos folclóricos japoneses. Finalmente, os ukiyo-e, pinturas com impressão feitas com madeira, tratavam dos mais variados temas possíveis. De novo, não se preocupem em memorizar esse monte de nomes diferentes: o importante aqui é entender que a pintura, no Japão, tem um longo histórico de ser extremamente versátil, tratando de temas que podiam ir da pura zombaria à doutrinação religiosa. Além disso, é preciso ressaltar o quão progressivamente populares esses diferentes tipos de arte foram se tornando: ainda que tenham começado como algo mais restrito às elites, pelo menos os akahon e os ukiyo-e já eram, certamente, uma forma de arte consumida por grandes segmentos da população japonesa. E é com esses ukiyo-e que irão surgir os primeiros “mangás”.

Katsushita Hokusai viveu de 1760 a 1849. Artista japonês conhecido por suas pinturas em estilo ukiyo-e, entre 1814 e 1878 Hokusai publicou uma série em 15 volumes (três dos quais póstumos) que ficou conhecida como Hokusai Manga. É difícil dizer com toda certeza se este foi o primeiro trabalho japonês a receber o nome de “mangá”, mas há um claro consenso entre pesquisadores de que se Hokusai não foi o primeiro ele certamente foi um dos primeiros. Isso de lado, seu pioneirismo talvez tenha menos importância do que sua popularidade e relevância. Nos conta Ito, em 1867 o governo japonês expôs diversos livros de imagens, dentre os quais os populares Hokusai Manga, na Exposição Mundial em Paris, uma mostra de que estes trabalhos não eram apenas apelativos ao publico em geral, mas reconhecidos pelo próprio governo como relevantes exemplos da cultura japonesa, além de dignos de serem expostos ao mundo como representativos do Japão. Mas de onde Hokusai teria tirado a palavra “mangá”? Paul Gravett, em seu livro “Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadrinhos“, cita a Frederik Schodt para nos informar de que a palavra “mangá” deriva da junção de dois caracteres chineses: “man“, que poderia ser traduzido como “involuntário” ou “a despeito de”, e “ga“, que significaria “imagens”. Segundo Gravett, tais possíveis traduções levaram Schodt (e, posteriormente, à grande parte do ocidente) a traduzirem a palavra “mangá” como “desenhos irresponsáveis”. Gravett, porém, discorda desta interpretação:
Então o que a palavra mangá pode ter significado para o artista Katsushika Hokusai em 1814, quando ele inventou o termo? Significava rascunhos mais livres, inconscientes, nos quais ele podia brincar com o exagero, a essência da caricatura [1]
Antes de continuar falando puramente de arte, porém, é preciso agora pararmos um momento para observar o mundo como um todo em uma outra época. Mais precisamente, é preciso que entendamos um pouco o período dos Descobrimentos: o momento, que começa em finais do século XV, em que a Europa se lançou ao mar. Uma rápida aula de história: os Descobrimentos tinham um incentivo especialmente comercial. Com o islã detendo o monopólio da única rota marítima então conhecida que ligava Oriente e Ocidente, a cristandade se viu na necessidade e buscar alternativas. Essa necessidade levou a toda uma série de descobertas, incluindo a ponta extremo-sul da África e o Cabo da Esperança, toda a América e, finalmente, uma rota marítima confiável que levava até o Oceano Índico, de onde o Oeste Europeu poderia finalmente estabelecer contato com o extremo oriente sem mediações. Infelizmente, o Japão logo se mostraria não muito feliz com a chegada dos europeus. Desconfortável com essa quase “invasão” européia, e temendo pela segurança de seu país, entre 1633 e 1639 o governo japonês lançou uma série de éditos que iniciaram uma política que ficaria conhecida como “Sakoku“. Assim, e a partir de 1636, entrar e sair do Japão se tornou um crime punível com a pena de morte. O Japão havia se fechado.
Obviamente, um isolamento total e completo de todo um país é praticamente impossível, então não vamos exagerar nossa definição de “fechar-se”. Ainda assim, foi um isolamento e isto não pode ser negado. E um isolamento que só terminaria com a a chegada dos Navios Negros. Em 1853, mais de 200 anos desde o início da política de isolamento, navios de guerra dos Estados Unidos, liderados pelo comodoro americano Matthew C. Perry, chegaram à baia de Edo. O Ocidente estava cansado do isolamento japonês. O Japão teria de se abrir, nem que a força. E, assim, o governo japonês se viu forçado a assinar um acordo de comércio, evento que marca a reabertura do país para o exterior. E se ainda era ilegal deixar o Japão até tão tarde quanto 1868, fato é que a entrada ocidental no Japão veio com bastante relevância após sua abertura comercial.
Deixando agora política, economia, comércio e o resto do mundo de lado, toda essa situação importa principalmente para entendermos que, uma vez aberto, o Japão receberá forte influência do ocidente. E para o entendimento do nascimento do mangá, uma das influências mais importantes veio na forma do correspondente britânico para o Illustrated London News, Charles Wirgman. Sua importância para o assunto é devida a uma revista que o mesmo criou, a Japan Punch, em 1862. Publicando desenhos que retratavam os conflitos entre entre o Japão e o Ocidente, a revista de Wirgman se tornou popular entre expatriados ocidentais e japoneses nativos. Para Helen McCarthy, a importância deste homem e desta publicação não podem ser minimizadas: em uma de suas palestras, ela chega mesmo a afirmar que os mangás como os conhecemos hoje possivelmente não existiriam sem Wirgman. Já para Ito, esta revista ainda mostra como o Japão foi capaz de assimilar muitos dos costumes que vinham de fora: com alguns dos quadrinhos da Japan Punch possuindo balões de fala, alguns artistas japoneses adaptaram tal técnica à seus próprios quadrinhos. Mas, ao mesmo tempo, Ito tenta apontar para outras influências ocidentais, incluindo aqui os próprios quadrinhos americanos, que se tornaram bastante populares com a ajuda de artistas japoneses.
Um destes artistas ao qual Ito se refere foi Rakuten Kitazawa. Inspirado especialmente no Yellow Kid do americano Richard F. Outcault, a partir de 1902 Kitazawa começou a publicar alguns quadrinhos na Jiji Manga, uma página do jornal matinal Jiji Shimpo, publicada aos domingos. Segundo Ito, Kitazawa teria tido essa ideia por notar que histórias em quadrinhos voltadas para crianças poderiam aumentar as vendas do jornal. É certo dizer, porém, que ele não estava sozinho: todo o período que vai do final do século XIX e começo do século XX parece ser o período que marca o princípio da divisão dos gêneros de mangás. Obviamente, histórias criadas para serem lidas por uma certa faixa etária ou por um certo gênero já existiam há tempos. As próprias jigoku-e, mencionadas acima e que tratam de expor alguns preceitos do budismo, eram mais voltadas para crianças, como afirma Ito. Porém, essa janela de tempo nos mostra uma outra intenção. Não eram apenas obras feitas para serem apreciadas por um dado grupo: eram obras feitas para serem compradas por um dado grupo. Assim, vemos surgir revistas como a Shonen Sekai (em 1895) e a Shojo Sekai (em 1906), ambas da editora Hakubunkan e ambas respectivamente as primeiras revistas “shonen” (ou seja, voltada para meninos) e “shojo” (voltada para meninas), com periodicidade mensal. Muitas outras revistas do tipo ainda viriam.

Chegamos, assim, às décadas de 1920 e 1930. Neste ponto, quadrinhos cômicos que faziam sátira de eventos dos mais variados, de políticos à cotidianos, já eram comum entre os japoneses. Para além disso, Ito nos conta que foi a partir da década de 1930 que as revistas infantis começaram a incluir quadrinhos em suas publicações. Porém, ainda não podemos dizer que estes quadrinhos eram exatamente iguais aos mangás que conhecemos hoje, apesar de já receberem o nome de “mangá”. Para chegar ao que vemos hoje é primeiro preciso avançar ao final da década de 1930, quando começou o que viria a ser conhecido como o maior conflito da história humana: a Segunda Guerra Mundial.
A importância desse conflito para a definição daquilo que conhecemos hoje como “mundo” não pode ser minimizada. Reunindo sob seu título uma série de batalhas menores e guerras abertas que se estenderam do ocidente ao oriente, do pacífico ao atlântico, sendo talvez o único conflito que mereça plenamente o título de “mundial”, a Segunda Guerra deixou atrás de si um saldo de mortos que algumas fontes colocam na casa dos 80 milhões, incluindo nessa contagem não apenas soldados lutando nos campos de batalha, mas também civis que morreram por bombardeios, fome, doenças e o que mais a sua imaginação conseguir pensar. E não se enganem, não havia “heróis” nessa guerra. Aliados e o Eixo, ambos os lados cometeram crimes hediondos contra seus inimigos, com o próprio Japão estando especialmente envolvido em relatos chineses e coreanos sobre os mais variados crimes de guerra possíveis, de massacres a civis a estupros e coisa pior. Já para além das perdas humanas, esta foi uma guerra que definiu como seria o mundo dali para frente: impérios foram desmantelados, zonas de influência foram criadas e outros impérios nasceram. Ao final da guerra, duas enormes potências despontaram no horizonte: Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, duas nações que viriam a controlar o mundo até pelo menos a década de 1990. Mas talvez o mais perigoso legado dessa guerra tenha sido a confecção da mais poderosa arma que a humanidade já havia criado: a Bomba Atômica, um terror que o Japão viria a conhecer bem até demais.
Entre 1939 (1937, se você contar que nessa época o Japão já estava em guerra contra a China) e 1945, assim, a Segunda Guerra afetou profundamente o Japão. E um dos elementos afetados por esse período foi, obviamente, os quadrinhos. Ao longo da Guerra, o incentivo aos artistas japoneses de produzirem quadrinhos que exaltassem o militarismo japonês e sua participação na guerra foi tamanho que artistas que não faziam quadrinhos-propaganda praticamente não conseguiam publicar seus trabalhos, com muitos artistas optando por procurar refúgio em outras nações, a fim de poderem publicar o que desejassem. Não foi um período glamouroso. Foi um período de escassez e de privações. E pior, foi um período que terminou com a queda de duas bombas atômicas, a rendição incondicional do Japão e o começo do controle americano sobre o Japão. Certamente o final da Segunda Guerra Mundial deixou um gosto amargo na boca de qualquer japonês do período. Em suma, o final da Segunda Guerra criou uma população que certamente ansiava por algo que diminuísse seu sofrimento. E os mangás viriam a cumprir exatamente esta função. Não por acaso, nos aponta Ito, vemos um “boom” de revistas de mangá nos três anos que sucedem à Segunda Guerra Mundial. Para além disso, este foi também o momento de definição daquilo que viria a ser o mangá moderno, como apontou Gravett:
É possível dizer que o nascimento do mangá moderno não poderia ter acontecido sem as dificuldades fora do comum enfrentadas pelos quadrinhos japoneses no pós-guerra. A guerra os havia atingido de modo tão duro que eles haviam praticamente desaparecido das já reduzidíssimas páginas dos jornais diários e revistas para crianças. Eles precisavam ser modernizados e reconstruídos do zero, assim como o próprio país [2]
E por onde passaria essa reconstrução e modernização? Obviamente, neste bojo estava incluso a criação de novas revistas de mangá, bem como de uma progressiva divisão dos gêneros, com o surgimento daquilo que viriam a ser os mangás seinen e josei (respectivamente, mangás voltados para homens e mulheres). Mas aqui já estou me adiantando. Antes disso uma outra mudança viria. Uma que mudaria completamente o que até então se conhecia como “mangá” e que seria definidora do mesmo. E, finalmente, uma que viria pelas mãos daquele que viria a ser aclamado, não sem certa razão, como o “Deus do Mangá”: Osamu Tezuka.
Antes de falarmos sobre Tezuka em si, é preciso entender como eram os mangás até então no que diz respeito ao mais fundamental elemento de uma história em quadrinhos: a imagem. Até o período do pós-guerra, os quadrinhos seguiam uma técnica que Gravett colocou como sendo uma “técnica teatral”. As personagens eram sempre mostradas de corpo inteiro. O cenário era, em grande parte, estático, e a combinação desses fatores davam a impressão de atores atuando em um palco de teatro. Tezuka será o primeiro a empregar o que Gravett coloca como sendo “técnicas cinematográfica”:
(…) imitando os movimentos de uma câmera para gerar a sensação de ação incansável e impulsionar os personagens ao longo da história (…). Linhas de movimento, distorções de velocidade, efeitos sonoros, gotas de suor, todo o arsenal de símbolos dos quadrinhos servia para incrementar a experiência [3]
Certamente qualquer leitor de mangás consegue perceber as técnicas descritas acima. Em fato, raro é o quadrinho que não as aplica. Mas tomemos cuidado para não cairmos na armadilha do “mito”. Isto é, tomemos cuidado para não vermos as inovações de Tezuka como puro e simples feito de alguma espécie de grande gênio ou visionário com capacidades quase místicas. Sua importância certamente não deve ser minimizada, especialmente por conta de sua vida de trabalhos, tendo ele sido o autor de alguns dos mais famosos e queridos personagens não apenas do Japão, mas também de todo o mundo. De Astro (de “Astro Boy“, como ficou conhecido no ocidente) à Safiri (de “A Princesa e o Cavaleiro“, como ficou o título aqui no Brasil), os personagens de Tezuka ainda hoje são reconhecidos por uma nada desprezível parcela da população mundial. Mas suas inovações, como qualquer inovação na história, certamente só puderam ter o impacto que tiveram por conta do momento histórico em que se encontrava.
Em primeiro lugar, o uso de técnicas cinematográficas não era algo inédito no mundo. O próprio Gravrett aponta que estas técnicas já eram amplamente aplicadas nos quadrinhos ocidentais desde pelo menos a década de 1930. Além disso, o cinema ocidental já era algo que fascinava artistas japoneses desde tão cedo quanto o começo do século XX. O próprio Tezuka nunca escondeu o quão profundamente influenciado pelo cinema ele foi, dado que seu pai costumava realizar filmes caseiros e os mostrar à família. Para além disso, o pós-guerra foi um momento em que a influência americana entrou de forma intensa no Japão, dado que este estava sob controle daquele. Quadrinhos e especialmente o cinema americano foram se popularizando cada vez mais no gosto popular. Finalmente, a temática humanista e pacifista de Tezuka, que permeia praticamente toda a sua obra, certamente atendia aos anseios de uma população que havia acabado de sair de uma das piores guerras que já enfrentara. O Japão ansiava exatamente por aquilo que Tezuka foi capaz de oferecer, daí a popularidade que seu estilo e seus quadrinhos conseguiram atingir. Assim sendo, seu primeiro mangá a empregar tais estilos e temáticas, Shin Takarajima (“A Nova Ilha do Tesouro”), de 1947 e publicado ainda em formato akahon (caso já tenham esquecido, akahon eram livros de imagens cuja capa costumava ter fortes tons de vermelho, dai o nome “Livro Vermelho”), foi um enorme sucesso. Outros seguiriam seu rastro e não seria exagero dizer que assim se abria, efetivamente, o mundo dos mangás novamente.

A partir deste ponto, os diferentes gêneros de mangás seguiram caminhos bastante diferentes. Os “mangás shonen” já eram bastante populares, como foi mostrado acima, mas no começo dos anos 1950 se centraram especialmente nos esportes, do boxe ao beisebol e ao futebol. Com a popularização das televisões e do rádio, as editoras logo começaram a perceber que revistas mensais haviam se tornado obsoletas. Surgiriam, assim, as duas primeiras revistas shonen semanais: a Shonen Magazine, publicada pela editora Kodansha, e a Shonen Sunday, da editora Shogakukan, ambas de 1959. Já o que hoje nós conhecemos como “mangá seinen” possivelmente teve início com os gekiga, termo cunhado por Yoshihiro Tatsumi em 1957 justamente para diferenciar seu trabalho, que ele considerava de cunho mais “sério” (dai o nome, que significa “Imagens Dramáticas”), do conhecido mangá. Inicialmente mais obscuros, os gekiga foram ganhando popularidade na medida em que atendiam aos anseios por quadrinhos de uma geração que cresceu lendo mangás, mas que via agora que os quadrinhos infantis já não atendia aos seus gostos. De caráter mais realista, os gekiga contavam histórias que batiam em problemas sociais, econômicos e políticos.
Assim como os shonens, os “mangás shojo” já tinham uma longa tradição, mas uma mudança significativa ocorre na década de 1960. Até então, os mangás shojo eram escritos basicamente por homens, além de carregados da ideologia da época, enfatizando assim o papel submisso da mulher. A partir da década de 1960, porém, mulheres começaram a escrever e publicar seus mangás e quando chegamos à década de 1970 o mercado de mangás shojo já era praticamente dominado pelas mulheres. É seguro dizer que os chamados “mangás josei” seguiram uma trajetória bastante similar à dos seinen: conforme as garotas que liam os mangás shojo foram crescendo, elas passaram a clamar e mesmo a produzir material mais condizente com suas idades. Certamente não se deve minimizar a importância e influência das mulheres na criação de mangás. O próprio estilo shojo foi drasticamente alterado e muitas das técnicas empregadas pelas mulheres nesses quadrinhos ultrapassaram os limites das revistas shojo. Sobre tais inovações feitas por estas mulheres, é exemplar a exposição que Gravett faz:
Elas davam aos quadros a forma e a configuração que melhor se adaptassem às emoções que queriam evocar. Elas suavizavam as bordas retas que delineavam os quadros, algumas vezes quebrando-as, dissolvendo-as ou removendo-as completamente. Elas sobrepunham ou mesclavam sequências de quadros em colagens. (…) Os personagens também não estavam mais limitados aos quadros: podiam colocar-se diante deles algumas vezes e ser mostrado de corpo inteiro [4]
Seria certamente interessante imaginar o contexto histórico, social e cultural que levou cada um destes diferentes gêneros de mangás a nascerem, se desenvolverem e se popularizarem. Infelizmente, como eu já havia deixado claro antes, isto vai além das propostas deste texto e fica como material para um possível futuro artigo. É sempre bom reforçar, este texto não esgota e nem poderia esgotar o tema. Muito ficou de fora de forma a favorecer uma postagem mais “esquemática”, que se prendesse especialmente à questão do surgimento do mangá como o conhecemos hoje. Em cada um dos momentos aqui citados, toda uma gama de outros fatores também estavam em ação, de movimentações artísticas a políticas, de econômicas a sociais, toda uma situação histórica que não pode ser menosprezada e que teve enorme influência no surgimento do mangá moderno. Aqui, eu apenas toquei a superfície do iceberg e certamente recomendo aos leitores que façam suas próprias pesquisas, nem que pelos diversos links e materiais citados aqui, e expandam qualquer eventual conhecimento que possam ter adquirido com este texto.
Para finalizar, é interessante nos fazermos a seguinte questão: por que os japoneses ainda leem mangá? Com o mundo caminhando para o 70º ano após o final da Segunda Guerra, e com o Japão despontando como uma importante potência econômica, o que leva os japoneses a consumirem esta mídia com tanta avidez? Certamente “tradição” poderia ser uma resposta. Estamos falando de um povo acostumado a “ler” imagens há já mais de um milênio. Se é à influência americana e ocidental que muito se deve a existência do mangá, este só pode se configurar como tal por esta influência ter recaído em uma nação e em um povo com tão longa história para com o imagético. Mas é possível que exista mais ai. Muitos autores apontam para os mangás como uma espécie de “válvula de escape” do estresse do dia a dia. Ao tratar do assunto, Gravett assim nos diz:
o mangá se tornou um kit de sobrevivência básica no “inferno do transporte” que milhões de trabalhadores enfrentam em trens superlotados até cinco vezes além da “capacidade normal”. De segunda a sexta isso já seriam ruim o bastante, mas trabalhar seis dias por semana já é comum no Japão desde a década de 1970. Ler mangá é uma maneira de definir seu espaço privado durante jornadas que chagam a durar até duas horas e meia [5]
E ele não está sozinho nesta afirmação. Em entrevista concedida à BBC britânica, para o documentário Mangá!, de 1994, ninguém menos do que Hayao Miyazaki mostra compartilhar dessa ideia. Ao que parece, o mangá ainda cumpre uma função social bastante relevante na sociedade japonesa. E com o Japão se tornando um país cada vez mais competitivo, é certo que as pessoas ainda precisarão de algum tipo de alívio para o estresse por bastante tempo. Podemos ainda, com o passar dos anos, ver o mangá integrado em diferentes mídias, a exemplo de diversos mangás de publicação online que podem ser acessados pelos celulares, um fenômeno relativamente recente. Que tipo de histórias estas novas mídias nos trarão, ou por quais mudanças a velha mídia da revista impressa irá passar, apenas o tempo poderá nos dizer. O futuro está ainda para ser escrito. Paremos, então, por aqui.
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1 – Gravett, P. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos; São Paulo, Conrad, 2006. Pág. 25
2 – Gravett, P. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos; São Paulo, Conrad, 2006. Pág. 32
3 – Gravett, P. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos; São Paulo, Conrad, 2006. Pág. 32
4 – Gravett, P. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos; São Paulo, Conrad, 2006. Pág. 83
5 – Gravett, P. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos; São Paulo, Conrad, 2006. Pág. 100
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Imagens (na ordem em que aparecem)
2 – As Cinquenta e Três Estações do Tokaido, de Higoshige
3 – Shonen Sekai Vol. 2 e Shojo Sekai Nº10
4 – Astro Boy. Episódio 1
Saudações, apreciei muito o seu trabalho! Estava buscando a causa do mundo fantástico que os mangás sempre apresentam, que, a meu ver é uma especie de fuga da realidade! e o porquê do brasil se identificar tanto com essas obras.
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Bom, os mangá já são um fenômeno mundial em termos de sucesso, então nessa linha o seu sucesso no Brasil pode ser visto como apenas mais uma faceta do seu apelo quase que universal (embora o fato de termos tido uma forte imigração japonesa pode ter sido crucial para a mídia em seu comecinho rs). Mas é algo que vale um estudo algum dia, e provavelmente há quem já tenha feito kkkk. Mas bem, em todo caso, fico feliz que tenha gostado do texto =)
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