
Voltemos, por um momento, alguns anos no passado. 15 anos, para ser mais preciso, até março de 1999, quando lançava nos cinemas do Japão um filme de pouco mais de 20 minutos: Digimon Adventure. Primeiro filme e animação da franquia, à película se seguiu a série animada de mesmo nome, que contou, ao longo daquele ano, a história de sete (e depois oito) crianças que foram escolhidas para salvar a um outro mundo da destruição. Eu não irei me estender muito aqui em fazer a sinopse da história, pois acredito que a vasta maioria dos leitores certamente sabem do que o anime se trata, quer tenham assistido ou não. Mas, se você precisa de mais informações a respeito, pode clicar neste link aqui e dar uma rápida conferida na página da Wikipedia de Digimon Adventure.
Sobre o que é Digimon Adventure? Sim, eu sei o que acabei de dizer, que não ia fazer aqui uma sinopse da história, mas não é disso que eu estou falando. Deixando o “plot” de lado, sobre o que a história fala? Bom, se você, leitor, leu o título deste post, já deve ter uma ideia de qual seria a minha resposta a esta questão. Na minha opinião, Digimon Adventure se preocupa em cobrir três assuntos: o crescimento, o amadurecimento e o autoconhecimento. E eu não coloquei tais palavras nessa ordem por acaso: o anime dá importâncias diferentes a cada uma dessas etapas, com o autoconhecimento sendo certamente a mais importante. Mas bem, já estou me precipitando também, vamos ver isto com um pouco de mais vagar.
Antes de entrarmos na história em si, é preciso um breve comentário a respeito dos estágios evolutivos dos digimons. Oficialmente falando, as traduções para cada um dos estágios seria, e indo do mais básico ao mais avançado: DigiTama -> Bebê I -> Bebê 2 -> Criança -> Adulto -> Perfeito -> Ultimate. É importante termos isso em mente pois, como veremos ao longo da série, os digimons tem um papel bastante curioso na trama: eles agem como espelhos das crianças das quais são parceiros, evoluindo e regredindo conforme a própria criança amadurece. Isso já se evidencia quando observamos a forma em que os digimons das crianças passam a maior parte da história: sua forma Criança (ou, se preferirem uma tradução mais literal do japonês, sua “fase de crescimento”).
Entrando agora na história, o primeiro arco da trama se resolve em torno da chegada das sete crianças escolhidas à chamada Ilha Arquivo. É interessante que esse seja o ponto de partida: uma ilha, perdida em meio ao oceano. Isoladas do restante do mundo, as crianças somente poderão conhecê-lo uma vez que amadurecerem o bastante. E este amadurecimento é, ao final, a própria razão das crianças estarem naquele mundo.
É uma constante dos contos ao redor do mundo. Bem delineada pelo antropólogo Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces, a Jornada do Herói se inicia com a partida do mundo mundano. Para se tornar o herói da história será necessário deixar a sua zona de conforto, normalmente ingressando em um mundo estranho, desconhecido. Escreveu o autor no mencionado livro que
(…) a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas”. Esse é o processo conhecido na filosofia hindu e budista com viveka, “discriminação” [entre o verdadeiro e o falso]. [1]
Ainda que, a princípio, o Herói se negue a fazer tal viagem (e, em Digimon Adventure, vemos no início as crianças tentando desesperadamente voltar para o próprio mundo conhecido), ao final percebe que não possui de fato grande poder de escolha: ele deve cumprir com seu destino e seguir em frente. Ao final desta jornada, espera uma recompensa. Quando recebe esta recompensa, o Herói já está transformado. É uma outra pessoa, que adquiriu conhecimentos que antes ignorava. Finalmente, ele deverá então decidir entre ficar naquele outro mundo com os conhecimentos que adquiriu, ou retornar ao mundo do ordinário e do mundano, espalhando os conhecimentos obtidos e levando ao avanço de todo o seu povo. Em poucas palavras, ao atingir a Iluminação o Herói deve optar entre ficar naquele estado ou retornar ao plano terreno, a fim de ensinar às outras pessoas como atingir essa mesma Iluminação.
É conveniente apontar que Digimon Adventure não dará esse ultimo passo. Ainda que a série se encerre com as crianças escolhidas decidindo voltarem ao mundo do cotidiano após suas aventuras, o resultado maior disso não é apresentado ao expectador (bom, é, nós temos 02, mas isso é assunto para outra postagem rs). Ainda assim, os passos anteriores são seguidos, da chegada a um mundo novo (o “chamado à aventura”) até o objetivo alcançado.
Voltando ao que eu havia dito antes, as crianças somente poderão deixar a ilha isolada (que, por que não, podemos considerar como a “casa”, o primeiro contato da criança com o mundo e o local onde permanecerá a maior parte de seu tempo, até atingir a maturidade correta para se aventurar nos “mares” do mundo exterior) ao se mostrarem amadurecidas. A forma pela qual o anime mostra esse amadurecimento está nos digimons, e é por isso que eu afirmei antes que os digimons são o espelho das crianças, refletindo seu progresso psicológico na forma de um progresso físico. Isto se dá de duas formas. A primeira delas é o puro alcançar do estágio Adulto (ou, para aqueles que preferem uma tradução mais literal do termo japonês, do “estágio maduro”). Mas apenas isso não basta: é preciso se mostrar capaz de alcançar este estágio sempre que necessário. Assim, não basta que Agumon consiga evoluir para Greymon em um único momento específico a fim de enfrentar Shellmon: ele precisa ser capaz de evoluir sempre que requisitado, a fim de ser capaz de lidar com os perigos que o mundo apresenta.
Uma vez que atinjam a maturidade correta, as crianças agora podem deixar a Ilha, embarcando em uma nova viagem. E é aqui que eu retomo o que falei mais acima: que o valor dado à busca de autoconhecimento pela série é muito maior do que aquele dado ao “simples” amadurecimento. Ao longo dos próximos dois arcos, a missão das crianças será a de encontrar seu respectivo “brasão”, possibilitando que seus parceiros digimons atinjam o próximo estágio evolutivo: a Perfeição (e dessa vez eu não vou colocar aqui a tradução literal do termo em japonês: vou deixar para falar sobre isso um pouco mais pra frente rs).
Agora, voltemos por um momento ao primeiro arco novamente. Como eu disse, aqui nós temos o amadurecimento das crianças escolhidas, com os digimons representando a passagem do estágio da infância para a maturidade. Porém, as circunstâncias dessa passagem são bastante interessantes. Via de regra, a evolução somente acontece, aqui, quando as crianças estão em perigo. Não existe, aqui, qualquer busca consciente pelo amadurecimento: este se mostra pura consequência das imposições do meio. As dificuldades e desafios da vida forçam as crianças a crescerem, estejam elas conscientes disto ou não. Ao avançarmos ao próximo arco, porém, a situação muda: agora existe a busca consciente pelo próximo estágio evolutivo. É verdade, via de regra a evolução em si ainda irá se dar no momento de maior risco, mas ainda assim é uma mudança que merece ser apontada.
Como as história nos contará conforme se desenrola, cada brasão representa um traço de personalidade que seria dominante em seu dono. Assim, os 8 traços de personalidade que a história nos apresenta são: coragem, amizade, conhecimento, confiança (ou honestidade), sinceridade (ou pureza), amor, esperança e luz. Considerando que estes traços de personalidade deveriam, em tese, existir nas próprias crianças escolhidas, a busca pelos brasões é, por consequência, uma busca por autoconhecimento e autocompreensão. Tanto é que é comum que a criança apresente algum conflito vinculado ao seu brasão, não acreditando possuir o traço que deveria lhe ser característico ou não entendendo o que é, exatamente, aquele dito traço. Torna-se, assim, uma busca dupla: primeiro pelo conhecimento sobre si próprio, mas logo depois pela compreensão daquilo que se descobriu sobre si.
É curioso que o nome escolhido para o próximo estágio evolutivo seja “de corpo inteiro”, tradução literal que para nós aparece como o nível “Perfeito”. Temos aqui uma noção bastante interessante: que a maturidade não traz a completude. Alcançar o estágio adulto, tornar-se um adulto, não significa o fim do desenvolvimento humano. Ainda existe mais a ser buscado, só que agora não mais no campo puramente físico do crescimento em tamanho. Trata-se, agora, de buscar compreender-se e, acima de tudo, aceitar-se, a fim de atingir a verdadeira completude. É somente quando as crianças descobrem e aceitam a si próprias que a evolução para o próximo estágio pode se dar, fazendo assim seu digimon evoluir novamente.
O próximo estágio evolutivo, porém, é talvez o mais difícil de compreender. Denominado “Ultimate”, a tradução literal do termo japonês surge como apenas “final”. Ao mesmo tempo, e contrariando o que a história nos havia apresentado até então, somente dois personagens irão atingir esse nível, e não todos os (agora) oito. A meu ver, para entender isso, considerando a série animada, é preciso observar a forma que as duas crianças avançam para um estágio acima da completude consigo mesmos: através da luz de dois seres angélicos. É somente após serem atingidos pelas flechas de luz lançadas por Anjemon e Angewomon que Taichi e Yamato (ou Tai e Matt) conseguem fazer seus parceiros digimons avançarem ao próximo estágio. O que temos aqui, portanto, é uma metáfora da Iluminação, um estado de transcendência completamente acima do mundo cotidiano e profano, ao qual apenas alguns poucos conseguem de fato atingir.
Contudo, a história não acaba ai. Até este ponto estamos somente no terceiro arco, o de Myotismon. Até aqui, todos os digimons atingiram a fase Adulta, sete deles são capazes de chegar até a perfeição (com a única exceção sendo Patamon, digimon de Takeru, ou T.K.) e dois chegaram ao estágio final. Porém a história segue e entramos então no arco dos quatro mestres das trevas. Por quê? Considerando que a história é sobre amadurecer e se conhecer melhor, ela deveria acabar aqui, não? É verdade, nós ainda temos que o Takeru não foi capaz de evoluir seu digimon à perfeição, mas como a criança mais nova do grupo seria mesmo compreensível que seu desenvolvimento não fosse tão longe, então por que continuar a história? Em parte, imagino, porque ainda falta uma coisa para essas crianças aprenderem: socialização.
Até aqui, ficamos basicamente no plano individual, com cada criança crescendo e amadurecendo individualmente. Mas elas não são apenas indivíduos: elas fazem parte de um grupo. São parte de um todo maior do que suas personalidades individuais e, agora crescidas e amadurecidas, precisam saber lidar com este fato. Aceitar que existem outros indivíduos com capacidades e desejos próprios, buscar seu lugar naquele grupo social, se separarem e reagruparem conforme for necessário… O ultimo arco da série, assim sendo, nos mostra como as crianças passam de indivíduos para membros de seu grupo social, devendo fazer o que for necessário para se ajustar a este grupo. Este é, de fato, um dos mais importantes estágios do crescimento psicológico humano.

Uma vez que o arco final se encerra, temos que as crianças já estão bastante transformadas. Capazes de agir em sociedade, também são agora capazes de compreenderem melhor a si próprias. E, então, é hora de partir. O portal para o mundo humano se abre e, relutantes, as crianças devem embarcar na viagem de volta. O mundo mágico da infância fica para trás, tendo cumprido sua função. É chegada a hora, afinal, de retornarem ao mundo real. E é aqui que a história se encerra.
Notas:
1 – Campbell, J. “O Herói de Mil Faces”. Editora Pensamento. Tradução de Adail Ubirajara Sobral.
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Imagens:
Digimon Adventure, episódio 54